revolver

no sábado, sozinha em casa, revirei roupas, sapatos, livros e CDs para o bazar; procurava coisas que já não queria mais (encontrei), mas não esperava também achar coisas das quais eu não quero me desfazer, representadas em roupas, sapatos e coisas. talvez o apego ao que é físico (fiquei pensando) seja nada mais que uma âncora no mundo de fora ligada ao que temos medo de perder no mundo de dentro.

peguei vestidos que já não me servem — seja pelas medidas, idade ou mesmo mudança de estilo — e separei sem muita dor. no meio deles achei um vestido azul de florzinha e babados. um vestido lindo que, quando serve, me deixa com corpo de preta cubana: viro uma Mulher com letra maiúscula. mas ele não foi sempre meu, ele era de uma mulher bem diferente de mim. ela é leve, feminina, toda em tons cremosos. nela o vestido ficava pura primavera e pernas.

ela me deu o vestido, de presente, como quem oferece um pouco de si. durante os muitos anos da nossa convivência eu aprendi, lentamente, a ser um pouco mais feminina, mais doce — com ela. gosto de pensar que ela, por outro lado, também aprendeu comigo um pouco da exuberância do verão e suas chuvas que lavam a alma. o vestido é um pouco do que somos nós duas e nossas histórias: a feminilidade e seus muitos temperos. nós aprendemos a variar sabores, transformamos nossa vida e a nós mesmas nestes anos.

ela é uma das mulheres que eu amo nesse mundo. diferente do que dizem alguns, mulheres podem se amar e ser amigas fiéis, sim. o amor e a fidelidade não são exclusividade de um gênero, mas de capacidade de amar. mas sim, há diferença nos amores. este amor entre mulheres não é sólido, como rocha; é fluido, adaptável e tem seus altos e baixos — o que muito bem nos serve. não somos todas nós um pouco vítimas das marés?

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ela me mandou hoje esse texto, de clarice lispector (tanta mansidão). não é preciso explicar.

Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero sequer tentar definir é uma luz tranqüila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir.

Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar de angústia e da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranqüila alegria. É que não estou habituada a não precisar do meu próprio consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ele já havia se transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.

Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho a dor a consolar.

Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso ao que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.

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