mamãe

minha mãe trabalhava muito pra nos alimentar, vestir e educar. minha mãe tinha sua própria vida com meu pai, uma esfera que nunca nos foi permitida, era só deles. minha mãe tinha seus segredos, que eram só dela. minha mãe nos tratava como adultos, mas não se discutia com ela, só se obedecia. minha mãe nos dizia frases inteiras só com um olhar. minha mãe sempre foi linda, charmosa, engraçada, inteligente. minha mãe lia muito e adorava música. minha mãe chorava. minha mãe ficava brava e nos batia de chinelo. minha mãe não falava a mesma coisa 2 vezes. minha mãe saiu de casa com 16 anos. minha mãe casou grávida. minha mãe sempre foi a pessoa mais corajosa do mundo. minha mãe não tinha medo de homem, mulher, bicho, nada. minha mãe matava barata e rato, sozinha! minha mãe não dependia do meu pai. minha mãe gostava do meu pai, apesar de tudo. minha mãe tinha uma blusa vermelha com borboletas douradas. minha mãe sempre amou todos os bichos e nos ensinou a amá-los e respeitá-los. minha mãe canta super bem. minha mãe fazia os brinquedos mais legais do mundo e as pipas que sempre voavam. minha mãe nos ensinou a cozinhar, lavar, passar, limpar e arrumar — não porque precisasse, mas porque queria que nós aprendêssemos a mandar direito no futuro. minha mãe nunca pediu desculpas e nem disse “obrigada”. minha mãe sempre acordou cedo e me acordava com carinho no cabelo, bem de leve, toda manhã, com café pronto.

ela não olhava a minha lição de casa, porque afinal sempre fui boa aluna. não perguntava da minha vida pessoal porque já achava que já tinha me dito tudo o que era importante saber, quando eu tinha uns 10 ou 11 anos. ela me disse pra não acreditar nos homens e pra cuidar de mim mesma, pois não haveria ninguém que pudesse fazer isso por mim; me disse pra não confiar nas mulheres; me disse pra pensar no futuro e guardar dinheiro; me disse pra confiar em mim mesma e sempre lutar pelo que eu queria; me disse que eu fosse uma vencedora e não dependesse nunca de ninguém.

eu sempre acreditei nos homens e sempre confiei nas mulheres; nunca pensei no futuro e não guardei nenhum dinheiro, absolutamente nenhum; confio e sempre confiei em mim mesma com fé cega. luto muito e sempre consigo o que quero; sou uma vencedora e não dependo de ninguém. sei limpar, cozinhar, lavar e passar muito bem mas nunca aprendi a mandar como ela. ainda odeio acordar cedo, provavelmente porque ela não me acorda mais com carinho no cabelo hoje em dia.

muitas das coisas que fiz e faço são por ela e pra ela, mesmo que ela não saiba. me vejo às vezes comemorando minhas pequenas vitórias com ela, dizendo “viu isso, mãe?”. a sensação é que ela nunca viu. sabe quando, na peça da escola, você faz aquela pirueta que ensaiou o ano todo e sua mãe estava procurando alguma coisa dentro da bolsa e não viu? é essa a sensação constante. é a ela que eu quero e sempre quis agradar, e ela provavelmente nem sabe, nunca soube.

durante anos me senti fazendo piruetas sensacionais enquanto ela procurava alguma coisa na bolsa. ou pior: quando ela olhava a pirueta e não achava nada demais… é só isso? (e volta a procurar a maldita coisa na bolsa) senti raiva, tristeza e carência tantas vezes, apesar de receber apoio de tantos à minha volta. não importava que elogiassem ou dissessem que eu era ótima: eles não são ELA. se ela não me diz que eu sou ótima eu não sou, não ainda. preciso fazer MAIS. vivi em pé de guerra com minha mãe por muitos anos, silenciosamente e quase sem perceber.

houve um dia nos últimos 5 anos — e juro que não sei dizer qual — em que finalmente fiz as pazes com minha mãe. não com a minha mãe que mora com meu pai, porque com essa eu nunca estive em guerra, não de verdade. fiz as pazes com a mãe que mora em mim, que trago comigo desde sempre, todo o dia e todas as horas. é contra essa que me revoltei quando adolescente, essa mãe que eu nunca tive mas sempre quis.

eu queria uma mãe que fizesse chá quando eu estivesse doente, que cuidasse de mim, que me desse colo e conselhos; uma mãe que não me mandasse lavar a louça, que fizesse meu prato preferido todo dia. queria uma mãe que me perguntasse como eu me sinto e se eu preciso de ajuda. queria uma mãe que me abraçasse e beijasse, que me tratasse como o bebê que eu ainda me sinto. em suma, uma mãe que não pensasse que eu sou perfeita e mais forte que todo mundo.

quando fiz as pazes com minha mãe interior, percebi que tinha me afastado todos esses anos da minha mãe de verdade, aquela que mora com meu pai. comecei a enxergá-la e amá-la mais do que nunca amei. percebi que sempre me relacionei com minha outra mãe e não com ela, a mulher que está além da minha fantasia. percebi e perdoei seus defeitos e pude ver melhor suas qualidades. com certo choque percebi como ela também mudou nesses 30 anos, e pra melhor.

não sei se foi ela quem mudou ou eu é que hoje sou capaz de ver, mas ganhei a mãe dos meus sonhos: a que faz bolinho de chuva com banana numa tarde durante a semana, a que pergunta como eu estou me sentindo e me faz cuidar mais da minha saúde, a mãe que dá colo e atenção quando eu mais preciso, sem que eu tenha que pedir. ganhei uma mãe que me respeita e me ajuda, que sabe das minhas limitações e as aceita, que não tenta me dizer o que eu devo fazer mas procura me dar conselhos bons.

em paz com minhas mães, sou capaz hoje de enxergar essa mulher que me concebeu e me criou, consigo ouvi-la, ajudá-la, entendê-la melhor. mais que em qualquer outro dia das mães, hoje estou feliz porque consegui conhecer minha mãe inteira e a tempo de aproveitar tudo o que ela tem de melhor, então deixo um recado pra quem tiver lido até aqui: não deixe sua mãe interior impedir você de conhecer sua mãe de verdade, um dia pode ser tarde demais.

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  1. Eu ODEIO você com todas as minhas forças!!!!

    Cê sabe que eu choro porque gosto, ainda mais lendo um texto que também são parte da minha vida.

    Só você pra me fazer pagar mico chorando no trabalho às 7h20 da manhã.

    Beijo

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