vocação

demorei pra me dar conta do quanto a voz é importante. o tom, textura, volume, entonação, tudo isso diz muito sobre quem você é. ou será que não diz?

por muitos anos (pra ser precisa, até os 23) fabriquei minha voz. era bem mais grave, mais forte, impunha presença. eu usava a voz como quem usa uma roupa ou assessório, era uma forma de explicar quem eu era. não era isso não, seria mais correto dizer que minha voz ajudava a promover quem eu queria parecer ou ser.

cresci aprendendo que precisava ser independente, poderosa, forte, auto-suficiente. meu ideal de mulher era aquele da década de 70, pós queima de sutiã: cabelos esvoaçantes, roupas sexy porém masculinizadas. eu também seria uma mulher estudada, com emprego e boa grana, dona do meu nariz (ou melhor, da minha buceta) e da minha própria vida. homens? acessórios sexuais. nenhuma mulher precisa deles para viver, ser feliz ou fazer qualquer coisa.

com todo esse ideal, imagem e pressão por trás da minha formação, como poderia eu ter voz de mocinha indefesa e fofa? minha voz não condizia com o ideal traçado pra mim, portanto eu a modifiquei. simples assim.

comecei a cantar muito cedo, antes de falar, acho. meu pai conta que eu mal andava e de dentro do berço já acompanhava as músicas cantando no meu idioma particular. cantava e dançava, sozinha, até dormir. não me lembro da vida sem cantar, sem música. aos 10 anos comecei a estudar violão e com ele fui até os 18 anos, quando iniciei estudos de canto de verdade. tudo amador, entendam, nunca quis ser cantora de verdade, mas cantar era parte importante da vida.

aos 18 fui cantar em coral, uma orgulhosa contralto. voz pequena, porém afinada, uma pérola no mundo das sopranos-mulherzinhas de vozinha irritante 🙂 rá!

mas quanto mais eu cantava, mais os professores e especialistas diziam, para meu desgosto, “querida, você não é contralto, é no máximo mezzo soprano”. como assim? eu não queria cantar com vozinha de mulherzinha, não!

segui me enganando (e enganando o ouvido alheio) até que com 23 anos fui estudar canto mais a sério, com o joão malatian, que depois de 1 aula me deu a notícia: eu era soprano. ponto.

pode parecer estranho, mas minhas aulas de canto semanais se transformaram em terapia, pois toda vez era a mesma coisa: toda uma preparação e muita conversa pra que eu conseguisse aceitar a minha voz verdadeira. eu não conseguia evoluir porque queria ser quem não era, queria ser carmen e não mimi.

com o problema ainda não resolvido, fui cantar no coralusp, com a sandra espiresz. no meu teste para entrar no seu coro, ela me deu uma bronca: você é soprano, e precisa aprender a se aceitar, a aceitar sua voz. você vai cantar aqui, como contralto, e vai aprender primeiro a falar com a sua própria voz, depois a cantar com ela como soprano que é. aos poucos.

e assim foi: com as aulas semanais e a orientação dela e do fernando coutinho, minha voz mudou. ou melhor, veio a ser o que devia sempre ter sido.

minha voz é suave, doce, quentinha. como eu sou, aliás, mas disfarço bem. ou não tão bem assim, já que teve gente que mesmo sem me conhecer sempre soube como eu era 🙂

sei que aparento ser totalmente durona, brava, independente, mas não é verdade, e minha voz me denuncia. não é que eu não seja nada disso, até posso ser de vez em quando; mas sou muito mais frágil e doce do que gosto de admitir. ainda me protejo, mas pelo menos a voz eu assumi!

e se quiser confirmar, escute minha tentativa (enferrujada) de cantar. e a escolha da música certamente não é à toa 😀

e depois de me ouvir, ouça o original, pelo amor de deus, porque minha tentativa foi risível e só pra mostrar como eu tenho voz de mulherzinha sim senhores e senhoras. sem fantasia, chico buarque, versão de 1968.

**

update: meu marido, que ouviu a gravação lá de recife, mandou dizer que essa voz não é a minha não, que esse microfone tá uma merda e eu tou toda insegura de falar em público 😀 em suma, essa aí não sou eu, acho (e eu sei como é minha voz de verdade? eu só me escuto do lado de dentro!). vou arranjar um microfone que presta e a gente tira a teima, pronto.

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  1. diego, 🙂 doce é você! um fofo.

    debora, eu tenho extrema dificuldade com assessórios. aliás, não uso 🙂 só óculos!

    sam, eu canto! eu sou uma criatura aparecida, apesar da insegurança de gravar. podexá que pagarei mais micos!

    fê, acho que sim, as risadas 😀 mas essa gravação das empregadas tá uma caca! um dia faço outra boa, com um microfone que preste.

  2. Zel, minha flor, acho eu que nenhum microfone do mundo vai conseguir mostrar a voz de ninguém como realmente é. Eu, todas as vezes que tentei, fiquei com voz de Patrícia Marx – mãs não a voz dela de agora e sim daquela época que ela cantava alguma coisa sobre um bilhetinho e um sofá, que não me lembro mais.

    Fique zen, sua voz é delícia 🙂 Só perde pra da Fal 😉

  3. Zel, o registro da tua voz ficou belíssimo !!!

    Fiquei arrepiada, menina.

    Adoro cada vez mais o jeito que você escreve, temos um humor parecido. Adoro !!!

    Técnica, voz, etc e etc a parte, ficou lindo, querida, porque é você cantando ESSA MÚSICA para o teu homem.

    Kisses

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