disritmia

sou de uma família com tradição de ouvir e tocar samba e chorinho. desde pequena até a adolescência, quando visitávamos meus tios-avós, tinha roda de samba e chorinho no quintal, depois do almoço. durante a manhã tocavam os vinis antigos de chorinho, os preferidos do meu tio joaquim. enquanto ele oferecia uma goiaba do pé ou nos mostrava as mangas amadurecendo os discos rodavam e formavam a base da nossa cultura musical.

os velhinhos todos se juntavam perto das árvores, no pedaço coberto do quintal, e começavam a batucada. sambas antigos, samba-canção, chorinhos, bossa-nova, tudo o que alguém pudesse se lembrar era cantado por horas a fio. lembro de brincar com os pandeiros, tamborins, até o surdo (a maior honra!); só um pouquinho, pra gente pegar gosto. e aos poucos aprendemos todas as letras que hoje ninguém lembra mais e que de vez em quando uma cantora da moda desenterra como novidade.

quanto da minha cultura eu devo aos meus tios-avós, meu deus. percebi tarde demais que herança não se trata só de dinheiro e que escolaridade não é cultura. qual é o preço de aprender a tocar surdo e “saber” síncopas e ritmos?

minha mãe me ensinou a dançar gafieira (e meu padrinho me desafiava, menina, a dançar com ele, que era fera!) e todas as letras de tudo o que eles tocavam. às vezes me pego cantando músicas que foram há muito esquecidas, mas ainda lembro.

pois foi como uma tempestade de emoção quando, ouvindo um disco “moderno” comprado pelo meu marido há alguns anos, começa a tocar essa canção que ouvi tanto nestas rodas de samba, disritmia. quase pude ouvir de novo minha mãe cantando junto com meus tios e eu aprendendo letras que só bem mais tarde fariam algum sentido.

ouçam aqui, com ney matogrosso e pedro luis, numa versão deliciosa. faz jus à minha memória afetiva, muito embora meus tios-avós já tenham ido embora.

essa é pra vocês, tios.

**

eu quero me esconder debaixo

dessa sua saia pra fugir do mundo

pretendo também me embrenhar

no emaranhado desses seus cabelos…


preciso transfundir seu sangue

pro meu coração que é tão vagabundo

me deixe te trazer um dengo

pra num cafuné fazer os meus apelos

eu quero ser exorcizado

pela água benta desse olhar infindo

que bom é ser fotografado

mas pelas retinas desses olhos lindos

me deixe hipnotizado

pra acabar de vez com essa disritmia

vem logo, vem curar seu nego

que chegou de porre lá da boemia.

(disritmia, martinho da vila)

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