à parte do reino — mar becker

amar o homem que tu és
amar o homem que tu és apesar do homem

amar sabendo que um homem pode se perder no amor – mas não uma mulher

nunca uma mulher

amar, meu amor
mas sem esquecer que a mulher de nós dois sou eu

.

eu não posso me esquecer das tantas outras

não posso esquecer eva
não posso esquecer agar no deserto com um bebê no colo

não posso esquecer as mães
que vêm e vão por são paulo

o caminho que fazem nas estações de metrô, não raramente
levando outra mão, pequeníssima

(não raramente sendo levadas por ela)

.

porque os tempos mudam, mas as mulheres permanecem as mesmas

porque são ainda todas aquela mesma moça no deserto
aqueles mesmos olhos áridos que no entanto terminam o dia querendo chorar um rio

.

meu amor, somos tão sozinhas

não posso te amar sem ressalvas
sem pensar que no fundo só temos umas às outras

ninguém mais
ni una menos

não esquecerei joana, queimada em praça pública
a beata lindalva
a virgem maria teresa goretti

não devo esquecer quantos litros de sangue uma mulher deve perder

para que cesse o pulso
e assim sem pulso possa finalmente ser considerada santa pela nossa santa igreja

.

tu falas de tua paixão por aves

eu também gosto de observá-las
há noites em que fico mais de hora sentada à soleira da porta, nos fundos de casa

olho o copado da jabuticabeira
a roupa no varal

muitas de nós ainda passam noites em claro, como se em vigília pelas que se foram

sou uma delas
sei que é preciso cuidar para que corpos inteiros não sejam comidos da nossa memória

se vierem graúnas, em bandos
e arrancarem a bicadas os fios do cabelo, para fazerem ninhos
se vierem beija-flores e furarem seus olhos, para beberem do rio
se quiserem levar também os cílios, os pelos do sexo, até lascas de unha – que levem

mas é preciso cuidar para que pelo menos uma parte do corpo de toda mulher morta reste intacta

o coração
o projeto de libélula que ardeu em algum dos seus gestos
o nome
o silêncio

.

a mim não cabe amar inadvertidamente

não posso esquecer as últimas horas de eloá
o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018

uma mulher a cada duas horas no brasil
seis mulheres a cada hora no mundo

não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no laço – como um animal

não esquecerei nina, que não esquecerá bruna
ambas se erguendo da mesma noite

não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada

não esquecerei minha irmã
minha mãe

minha avó, morta com um tiro no peito

.

tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais

eu te amo mais, meu amor

porque tu me amas com amor apenas
mas eu tive que aprender a te amar com ódio


mar becker
em: à parte do reino, poema que está no livro “a mulher submersa”, editora urutau, aqui

  • este poema faz menção às poetas micheliny verunschk, bruna mitrano e nina rizzi. faz também menção a relatos da poeta bárbara fernandes. ele é parte de uma série em trabalho, “à parte do reino”.

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