teus beijos nunca mais

ela tremia, nervosa, na portaria. será que ele ainda mora aqui? entra e sai de uma gente diferente da última vez que ela estivera ali, há muitos anos, muitas vidas. meninas de calças muito baixas e suas barriguinhas lindas, meninos de cabelos compridos e despenteados, e ela esperando. o porteiro tinha entendido mal o apartamento, o nome dele, o nome dela. tentando disfarçar a impaciência e quase desistindo, ela repete: otávio, apartamento 82. aquele que ouve música alta em madrugadas de muito calor — quase disse, mas calou, mal contendo as lembranças como vento embaraçando os cabelos. ah, sim, seu otávio, tá sim senhora, um momentinho. depois do que pareceu um século, atendem. o nome da senhora, por favor? e ela pensou em dizer mil nomes, aqueles todos que ele dizia no ouvido, aqueles que ela própria brincava de se chamar, mas disse só gisele. como é? não tou ouvindo a senhora, não! apavorada, ela quase grita GISELE. nervosa, fecha os olhos em desespero, apavorada com a possibilidade dele não lembrar. “que gisele?”, ele diria, e ela morreria um pouco ali mesmo. pode subir, moça, ali no elevador da direita. ela respira (e nem sabia que tinha parado) e segue — sim, eu sei, droga, subi aqui tantas e tantas vezes!

será que ele estaria olhando pela janela? ela anda devagar, fazendo muita força para não olhar pra cima, para parecer displicente, relaxada. o coração bate tão alto que ela acha difícil que pudesse escutar qualquer outra coisa. quase arrependida, enquanto o elevador sobe, ela pensa nos anos todos que ele esteve presente no seu pensamento, nas lembranças constantes de como ele era maravilhoso, apesar de tudo. ela o comparava aos outros que iam e vinham; ele parecia sempre o melhor. ah, nenhum outro a beijava daquele jeito, nenhum adivinhou seus desejos. os outros tratavam dela como um bebê, uma boneca. ele não, ele a fazia sentir uma mulher — ela, que era tão menina na época! mas e agora? ela estava mais gorda, mais velha, não usava mais aqueles brincos todos e nem aquelas sainhas. será que estava parecendo uma bibliotecária? será que ele não reconheceria nela a menina-mulher? não, pensa ela, ele não ia mais querê-la, que idéia estúpida de ir até lá e dizer “oi”, e…

a porta do elevador abre, e ela sai quase correndo. de novo aquele corredor, o cheiro do prédio, todas as horas passadas ali com ele. parada na frente da porta, ela se enche de coragem, arruma os cabelos, ensaia um sorriso, bate na porta. e ele abre.

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