De quando eu era poeta

(2002)

olfato


uma experiência de cor, luz e cheiro (quase sabor). depois de uma caminhada longa e árdua, suando e observando as pedrinhas mais do que o próprio caminho (como é peculiar esse meuandar!), me vejo de frente para o mar mais azul que já vi, o céu sem nuvens e um cheiro gostosamente familiar, embora estivesse a quilômetros de distância de casa. cheiro de domingodescalça no quntal, de comida, de ritual religioso. era mais que uma impressão, era um saber-sabor; procurei desesperada ao redor (o que seria, meu deus?) e me percebi completamentecercada pelo que olhava e não via, mas sentia: alecrim! crescia como grama, espalhado pelo chão, sob meus pés. quanto mais pisava, mais cheirava. fechei os olhos e senti o calor, o cheirode maresia misturado ao cheiro do tempero místico. minha boca encheu de água e me senti quase abraçada, protegida como nos tempos de menina.


sereia
palavras, sons, vibrações, são todos da mesma natureza. o encantamento se faz progressivamente, articulando, conquistando em suspiros e pequenas seduções, tão sutis que nem se fazemperceber. procuro os olhos dela, mas olho a boca, que vez ou outra revela mais do que diz com palavras, aquele súbito apertar de lábios ou o queixo que quase treme. as mãos às vezes seempolgam e invadem o espaço que antes era só do som, gesto brusco, a angústia do que não se diz. poderia só ouvir, de olhos fechados, mas não consigo. desejo o que é físico, uma ânsiade tocar e abraçar, sentir a pele do corpo e os cabelos, me embriagar naquele cheiro de flor, que ela certamente tem.