fabricando

só no filé

June 26, 2012 · 18 Comments

já disse e repito: sou a favor de escolhas. acho que cada mulher deve mesmo ter o direito de parir onde e como quiser. parto é um processo fisiológico, individual e não deve ser tratado como condição médica. a intervenção deve acontecer quando necessária, e somente com consentimento da gestante ou da família. no mais, os profissionais da saúde devem apoiar o parto, dar segurança à gestante e garantir que em caso de problemas a devida assistência será dada. acho legítimo e muito interessante parir em casa, com a assistência de médicos qualificados, doula, obstetriz, com o apoio da família, enfim, o que quer que a gestante escolha e se sinta à vontade em encarar.

dito isso, quero fazer algumas considerações sobre a marcha do parto domiciliar, este é o motivo do post. acho incrível que mulheres se reúnam e saiam às ruas para defender o direito de parir em casa e ter um parto natural ao invés de irem a um hospital, especialmente num país cujo índice de partos via cesárea é muito superior ao recomendado pela OMS. parir naturalmente é melhor para a mãe e para o bebê, e o índice de partos normais nos hospitais públicos vem subindo, felizmente. com mais rigor e acompanhamento dos motivos de cesárea creio que em alguns anos esse número chegará a um nível aceitável.

e chegar a 15% ou menos de incidência de cesárea é suficiente ou significa que os direitos da mulher estão garantidos? NÃO, é claro que não. porque mesmo quando parto é normal, em hospitais públicos e privados, quase nunca há respeito pelo direito da mulher de viver seu processo de parto, escolher posição, quem estará acompanhando. quase sempre as mulheres são sujeitas a episiotomias “preventivas”, procedimento extremamente invasivo e francamente quase tão impactante quanto uma cesárea, apesar de menos arriscado (o impacto deste procedimento na vida sexual da mulher e sua autoestima são significativos, e não devem ser esquecidos).

gestantes são frequentemente chamadas de “mãezinha” por enfermeiras e médicos, como se não tivessem nome e identidade, e no momento em que deviam estar no controle do processo, são infantilizadas ou desrespeitadas. quantos já ouviram histórias sobre mulheres em trabalho de parto sujeitas a frases como “na hora de fazer tava bom, né? agora aguenta!”. e pior: precisam passar por isso num dos momentos mais difíceis e impactantes da vida de uma mulher, que é trazer ao mundo seu filho.

ou seja: na rede pública, 67% das mulheres são sujeitas a partos cirúrgicos (com todos os riscos envolvidos) com recuperação lenta e dolorosa (quem acha que cesárea é moleza é porque não passou por uma, obviamente); os outros 43% das “sortudas” que fazem parto normal estão sujeitas a trabalhos de parto sem apoio emocional e não raro tratadas com desrespeito no processo. animador, não?

vou dar um chute aqui, para efeito de argumentação — suponho que cerca de 90% das mulheres brasileiras usam o sistema público de saúde para dar à luz. muitas sem pré-natal, diga-se, seja por ignorância seja por falta de estrutura da rede de saúde.

diante deste quadro, volto à marcha e ao parto domiciliar — vocês sabem quanto custa esse parto domiciliar defendido na marcha, quando cobra uma obstetriz ou um médico como o jorge (com o qual me consultei, quando grávida. ele é ótimo!)? cerca de R$1.500 o médico e mais uns R$1.000 a doula/obstetriz. além das consultas de acompanhamento, claro, todas particulares e nunca menos de R$400. faça as contas, por favor, e voltemos aos 90% da população.

parto domiciliar é assunto para mulheres RICAS. mulheres pobres têm seus filhos em hospitais, aqueles que descrevi lá em cima, ou nas (raríssimas) casas de parto, que enfrentam inúmeras dificuldades, inclusive para se manterem abertas graças ao preconceito e à pressão de médicos para fechá-las. bem, e as mulheres paupérrimas têm seus filhos em casa, como as ricas, porém sem o auxílio luxuoso de profissionais.

chego finalmente ao assunto que me motivou a escrever o post: chega a ser um pouco ridículo ver a elite das mulheres, representantes orgulhosas do feminismo, sair às ruas de grandes centros para protestar pelo direito de parir em casa, considerando que essa opção só existe para mulheres que são ricas e representam a minoria da população.

onde estão as marchas, blogs, tweets, abaixo-assinados e campanhas online desse público engajado para melhorar as condições de parto da maioria das mulheres? não seria mais útil e humanitário fazer barulho e lutar por melhores condições de parto considerando a realidade da maior parte da população feminina?

uma coisa não invalida a outra, é claro, que venham mais marchas e protestos. mas se for para protestar e apoiar movimentos, da minha parte gostaria de ver estas mulheres muito mais engajadas em mudar as condições para TODAS e menos preocupadas com as que podem pagar pequenas fortunas para exercer seu direito de escolha (e já o fazem, a propósito). queria ver estas mesmas mulheres defendendo a descriminalização do aborto, tratamento humanitário em hospitais, mais casas de parto, pré-natal disponível para todas.

o que vejo, aqui à distância e metaforicamente, são mulheres ricas (antes de dizer que não são, que não somos ricas, lembrem da distribuição de renda, pensem bem…) protestando pelo direito de comer filé e não pé de galinha. com suquinho de maçã.

Categories: maternidade · parto · saúde
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