o título é uma piada, é claro, porque eu jamais faria esforço para criar um gourmet. não por nada, é que acho uma bobagem sem fim chamar culinária de arte. cozinhar é viver. e meu interesse principal é mostrar ao meu filho (e a quem me acompanha nessa vida, sempre que possível) que comer é legal, divertido e gostoso (além de necessário). e que não é preciso tantos aditivos e subterfúgios pra realçar alimentos, eles são ótimos quando puros (crus ou não).
tenho escrito bastante sobre alimentação do otto desde que ele nasceu. no seu primeiro aniversário fiz questão de fazer um bolo bem lindo e diferente eu mesma (nada contra quem compra bolo do filho, ok? mas pra mim isso é importante, e faço questão de preparar eu mesma como parte do processo de comemoração). no aniversário de 2 anos, fiz questão de fazer todas as comidas servidas na festa em casa, com a ajuda das avós, amigos, tios e tias.
o processo de elaboração da comida (começando pela decisão do cardápio, passando pela preparação e arrumação na mesa) é uma das coisas mais deliciosas das comemorações. há uma quantidade enorme de amor nessa preparação, escolha de ingredientes, em todos os passos. não é só comida que se mastiga e engole, é a camaradagem na cozinha, as brincadeiras durante a preparação, a mesa sendo arrumada, o resultado final, a conversa sobre o resultado.
e assim também é no dia a dia — comer é socializar, interagir. dar de comer é cuidar, e amar. a comida do otto sempre foi feita com cuidado, técnica e amor, seja por mim ou pela babá dele, que tem com a comida a mesma relação que nós da casa. talvez por isso ela esteja trabalhando tão bem conosco há 5 anos, sempre tão bem alinhada com nossos valores. ela e eu começamos o processo de alimentação do otto juntas, e ela (com 2 filhos e 1 neta) me ensinou muito também. preparei no papel a lista de alimentos dele quando começamos o processo, experimentei tudo que ele comia, mudamos as combinações conforme a reação dele à comida, e dia a dia apresentamos a ele o maravilhoso mundo dos alimentos. e como resultado, o otto ama comer e experimentar coisas novas!
o otto nunca comeu papinhas industrializadas. comprei uma vez, para testar “na rua”, como backup (caso ele recusasse a comida feita em casa), mas nunca foi necessário. a verdade é que ele só comeu papinha por 2 meses (até o final dos 7 meses), pois logo que se acostumou com a papinha começamos a dar pedaços de legumes, frutas e carnes (aos 9 meses). e logo que percebemos que ele mastigava, começamos a separar os alimentos bem claramente no prato, e começou a comer arroz, feijão amassado, e tudo o mais. com 12 meses ele comia salada, prato principal e fruta de sobremesa, como um adulto. sal e temperos mais fortes só colocamos a partir dos 2 anos (apesar de sempre ter comido tudo do jeito que era servido quando estávamos na rua). outra coisa que não incentivamos foi tomar suco de fruta, sempre preferimos dar a fruta diretamente (e ele gosta mais). o único suco que damos é de laranja, feito na hora, pela manhã, já que ele não toma leite.
antes de 12 meses, o que fazíamos era levar a comida dele em potinhos, pra onde íamos. e quando possível (faço isso até hoje, aliás), ele almoça antes de sairmos, especialmente quando não temos controle sobre o cardápio. há poucas coisas realmente proibidas na alimentação dele — (*) refrigerante e álcool 😀 — então comer fora não é problema. como em casa ele come de forma muito regular e correta (salada + prato principal + fruta), não nos importamos que ele coma coisas piores nos fins de semana. a verdade é que depois dos 12 primeiros meses de “doutrina” dos alimentos (sem sal, sem tempero, tudo colorido e separadinho no prato, muita variedade) ele não tem medo de experimentar nada, e quer provar de tudo. gosta de variedade, não dá muita bola pra doces (come, mas sem muita fissura) e não se acostumou a tomar líquidos junto das refeições. seguimos a recomendação do pediatra dele de preferir sempre comer a fruta ao invés de tomar suco, e ele acostumou.
hoje em dia ele almoça e toma o lanche da manhã na escola — menu ovo-lacto-vegetariano e orgânico, já falo sobre isso — e toma café, lanche da tarde e janta em casa. sempre comida preparada por algum de nós (pai, mãe ou babá) ou pela cantina da escola, preferencialmente alimentos orgânicos (ovos e frango sempre orgânicos). faço bolo 1 vez por semana, quando o pai toma sorvete ele toma também, quando a mãe quer pipoca ele come também 🙂 e nos fins de semana, comemos o que decidimos na hora.
um dos fatores de decisão sobre a escola que ele frequentaria foi o cardápio de almoço e lanche. nos incomodou demais a quantidade de alimentos que nos recusamos a consumir que são servidos nestas escolas, entre eles: pãozinho “sevenboys”, margarina (!), suco de caixinha, frango e ovos não orgânicos. nada de fruta ou castanhas de lanche, porque “as crianças não comem”.
somos absolutamente contra restrição de proteína animal para crianças. diferente do que muita gente afirma, em especial para crianças, é recomendada a suplementação em caso de dietas vegetarianas. não faz sentido algum pra mim optar por suplementar artificialmente com vitaminas que podem ser obtidas diretamente dos alimentos. entendo a opção de um adulto em ser vegetariano, é válido e legítimo, mas não acho correto impor a mesma decisão (que nem é decisão, afinal) a uma criança. mas vegetarianismo é como religião — não dá pra discutir, porque passa por crença e motivação moral e ética. então falo somente por mim: se meu filho decidir ser vegetariano (ou judeu, enfim), é opção dele, quando tiver discernimento para decidir. privá-lo de proteína animal em sua fase de crescimento por uma convicção, sem ter 100% de certeza das implicações no seu crescimento e desenvolvimento? não mesmo.
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me motivei a escrever este post porque muitas pessoas me parabenizam pelo ótimo apetite e disposição pra comer do otto. e eu acho estranho, porque no fundo sempre acho que esse amor pela comida e pela experiência de comer é inato, é dele. mas pensando racionalmente (e lendo muito do que se escreve por aí sobre hábitos alimentares de crianças), acho que não é só isso mesmo. repensei algumas das nossas práticas alimentares da casa, e acho que têm sim impacto no comportamento dele. e resolvi compartilhar, apesar de não haver comprovação nenhuma e eu não poder garantir que vai funcionar com todas as crianças. mas quem sabe né? tentar não custa.
1) seja a mudança que você quer ver no mundo. você, ou as pessoas que convivem com a criança, são chatos pra comer, não comem de tudo? esqueça. vocês são os exemplos, e não existe o “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”. a alimentação do outro é uma das coisas que é impossível controlar, mesmo quando o outro tem só 8 meses de idade.
2) ofereça o mesmo alimento repetidas vezes, em especial no começo do processo de alimentação. o pediatra do otto sugeriu que servíssemos a mesma fruta por 7 dias, mesmo que ele recusasse, e só então trocasse a fruta. pra que ele conhecesse a fruta, a cara, o cheiro, o gosto, a textura. as crianças recusam tudo que não for leite da mãe, no começo. resistir à mudança é parte da natureza humana, é preciso insistir para ensinar que coisas novas podem ser legais, depois que deixam de ser novas. aos poucos eles aprendem que coisas novas podem ser interessantes (mas continuam recusando no começo. continue oferecendo)
3) nunca insista à força. nunca. essa briga você vai perder. não é possível obrigar alguém a se alimentar de forma consistente. é preciso criar o interesse, e principalmente tornar a hora da refeição um momento agradável, feliz, gostoso. não quer comer? não coma. coma você, mostre prazer em comer. as crianças funcionam por imitação. aconteceu mil vezes do otto não querer alguma coisa, até outra pessoa experimentar — aí ele queria. e amava, e repetia.
4) sempre ofereça muita variedade. as crianças gostam de brincar com a comida, de se divertir enquanto comem. além disso, é importante ter a opção de recusar — se você colocar só 2 alimentos, e ela recusar 1 deles, sobrou só 1. se você oferecer 5 tipos de alimentos e ela recusar 2, ainda sobraram 3. é normal a criança se recusar a comer alguma coisa, faz parte inclusive do processo de auto-afirmação. deixe que a criança tenha a opção de escolher. faça porções pequenas, para não desperdiçar, e pronto (dependendo do caso eu guardo o que ele não quis, e sirvo de novo em outra refeição, e ele come!)
5) a propósito — acostume-se com o não. lide com o não de forma natural, como lida com o sim. a criança precisa sentir que o não/sim têm o mesmo peso, senão a recusa vira arma contra você!
6) não rotule o gosto da criança pela recusa. um “não” não significa que ela não gosta do alimento, mas que naquele momento ela não o quer. quando a gente rotula o gosto da criança rapidamente demais, as opções começam a ficar escassas, e pior, a criança não terá oportunidade de mudar de ideia, porque você não vai mais oferecer! ou pior: vai se convencer (por sua causa!) que ela realmente não gosta de X. policie-se, evite rotular, insista, tente de novo e surpreenda-se.
7) faça pratos bonitos. misture sabores e texturas. não cozinhe demais os legumes, assim que a criança começar a mastigar. mastigar é divertido, e faz parte do processo digestivo. não faça “melecas” misturadas e purês, separe os alimentos claramente no prato. ensine o nome dos alimentos, aproveite a refeição para ensinar sabores (azedo, amargo, doce, salgado, etc.), texturas, cores. não tenha medo de deixar a criança experimentar ardidos, azedos, amargos. elas podem gostar!
8) seu filho não é você. ele pode ter gostos diferentes dos seus, então não limite o gosto dele tomando como base o que você gosta/desgosta. não é porque você odeia melancia (meu caso) que não vai servir para a criança (otto ama). criança não gosta só de doce, não. não tenha medo de dar alimentos crus (sempre limpos e sob supervisão, claro), castanhas, coisas “duras”. ensine seu filho a comer essas coisas.
9) coma junto com seu filho. eles comem melhor quando a gente come, e se interessam pelo que nós colocamos no prato. o otto experimentou cebola crua porque viu no meu prato, quis, experimentou e amou. come todo dia, e muito, se deixar. não existem alimentos “de criança”, eles precisam experimentar de tudo.
10) ensine seu filho a reconhecer os alimentos “in natura”. mostre as frutas, legumes, verduras, temperos (se puder, no jardim ou na horta). mostre os bichos que ele come. mostre ovos, deixe ele quebrar ovos pra fazer bolo, colocar a mão na farinha, experimentar açúcar, sal, canela. comida não é um prato feito na mesa, é um processo. eles amam aprender sobre o processo, e ajudar na preparação. isso cria uma afinidade e interesse pela comida que não tem preço.
11) evite temperos em excesso nos alimentos (sal, alho, cebola, louro, enfim). temperos são coadjuvantes, somente. apreciar o sabor original dos alimentos é maravilhoso, e só é possível se você não mascarar com temperos. dê ao seu filho a chance de saber qual é o gosto do brócolis puro, sem sal nem azeite nem alho nem nada. quando puder mostrar a diferença entre cru e cozido, mostre. é um aprendizado delicioso (inclusive pra você! aproveite a oportunidade pra re-conhecer seu paladar :D)
(update em 25/março/2013)
12) desencane da sujeira. experimentar com as mãos, esfregar na mesa, no prato, no corpo inclusive, faz parte. comer é também um ato sensorial, que a gente afina com o tempo (curte a textura só na boca), mas pra eles é tudo novo. eles ainda não controlam totalmente o movimento fino, então deixe pegar com as mãos, explorar. dê comida num lugar que seja fácil de limpar, e simplesmente coloque as roupas (e o resto) pra lavar depois. mania de limpeza e organização não combinam com bebês 😉
13) não ache que a refeição vai acontecer em 15min. se estiver com horário pra terminar, comece MUITO antes. eles demoram muito mais tempo que a gente pra comer, normalmente, e isso independe da fome. a refeição não é tempo só de se alimentar, mas de explorar, aprender, conhecer, e se relacionar com quem está dando a refeição. se estiver dando muito trabalho ou estiver de saco cheio (enche o saco às vezes, tá?), peça pra outra pessoa ajudar, alternando com você. aliás…
14) mamãe, experimente deixar outras pessoas darem a comida, você pode ter uma surpresa. por conta da nossa ansiedade pra criança comer, ou pressa, ou asco da bagunça, a criança percebe que aquele momento ela está no controle, e usa-e-abusa. muitas das relações de cuidado são quedas de braço entre cuidador/criança, elas estão justamente na fase de aprender sobre controle nos relacionamentos. quebre o ciclo, mude a rotina, e observe como as coisas mudam.
eu teria muito mais pra escrever sobre isso, mas acho que tá bom pra agora. espero que seja útil pra alguém 🙂
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(*) pensei melhor e a lista não é tão pequena. fazem parte dela: sucos adoçados, chocolate de forma geral (ele só come quando a gente come, e é raro), bolacha recheada (dependendo de nós é jamais, em casa não entra), doces “de criança” tipo pirulito, balas, chiclete, salgadinhos de saquinho (nunca são comprados por nós também) estão na lista de no-no. evitarei ativamente que ele coma enquanto for possível. atualmente ele nem sabe o que é bala, pirulito, por exemplo. bolacha ele come, se oferecer, porque de vez em quando compramos um cookies orgânicos, e ele sabe a “cara” do alimento. mas não gosta muito, pra ser sincera. já doritos ele amou (puxou à mãe).