..21.1.01..
A Máquina do Mundo E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som dos meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas da inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiros tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: "O que buscaste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermértica,
essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente em que te consomiste... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo."
As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo o que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios, dá a volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que tantos monumentos erguidos à verdade;
a memória dos deuses, e o solene sentimento da morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse ralance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.
mas, como eu relutassse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima - esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas preste e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. (Carlos Drummond de Andrade)
Este poema foi um marco na minha vida. Eu tinha 16 anos, devia apresentar um trabalho sobre Drummond para o curso de Literatura e este era o poema que eu devia declamar, de cor, para a turma, depois de estudá-lo. Quando mais eu lia, menos entendia. Precisei de dicionários, havia tantas palavras que eu não conhecia (e eu achava que sabia tudo :))... Li uma edição comentada, e novas e maravilhosas perspectivas se abriram para mim: havia alguma coisa por trás daquilo tudo, dos versos, da poesia. Não era só bonito. Como é lindo esse despertar crítico/analítico!
recitado por Zel @ 11:19 PM
Madrigal melancólico O que eu adoro em ti Não é a tua beleza. A beleza é em nós que ela existe. A beleza é um conceito. E a beleza é triste. Não é triste em si, Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que eu adoro em ti, Não é a tua inteligência. Não é o teu espírito sutil, Tão ágil, tão luminoso, -Ave solta no céu matinal da montanha. Nem a tua ciência Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti, Não é a tua graça musical, Sucessiva e renovada a cada momento, Graça aérea como o teu próprio pensamento, Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti, Não é a mãe que eu já perdi. Não é a irmã que perdi. E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza, Não é o profundo instinto maternal Em teu flanco aberto como uma ferida. Nem a tua pureza. Nem a tua impureza. O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me! O que eu adoro em ti é a vida. (Manuel Bandeira)
Esse eu considero o meu poema, porque o Gabriel mandou pra mim, dizendo que era a minha cara. Eu acho que é mesmo, embora isso possa soar um tanto pretensioso. Não é, é só aquilo que a gente sente às vezes de se reconhecer no que outro escreve.
recitado por Zel @ 11:09 PM
Soneto de Devoção Essa mulher que se arremessa, fria E lúbrica aos meus braços, e nos seios Me arrebata e me beija e balbucia Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia Que se ri dos meus pálidos receios A única entre todas a quem dei Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama A miséria e a grandeza de quem ama E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! - uma cadela Talvez... - mas na moldura de uma cama Nunca mulher nenhuma foi tão bela. (Vinícius de Morais)
Engraçado, eu não gosto de Vinícius de uma forma geral, mas há poemas que realmente tocam. Esse é um deles.
recitado por Zel @ 11:07 PM
..19.1.01..
I Casa a cada dia abandonada, Escadas Arcadas Salas frias, Alegria na tua chegada.
II A um chamado teu Eu correria. Engolindo o orgulho Entraria na esfera de silêncio. Não há promessa em tua voz. Teu gesto é igual ao Do vendedor de insuspeitas Frutas podres: --Leve-as, não se arrependerá. Faço destas maçãs, tangerinas, amoras Minha cota de agonias Teoremas Teorias. Por ora, teu desamor É meu pão de cada dia. (Gabriel Albuquerque)
O primeiro foi feito pra mim, rapidamente, num guardanapo quando tomávamos uns drinks no Ritz, e eu fiquei muito lisonjeada. O segundo foi feito para um ex-amor, e fiquei feliz também, porque o Gabi o incluiu no guardanapo. Ambos estão agora aqui em ótima companhia.
recitado por Zel @ 4:02 PM
..18.1.01..
As Sem-Razões do Amor Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga.
Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. (Carlos Drummond de Andrade)
Gosto muito de Drummond, e esse é um dos meus favoritos. Eu acredito nesta homeopática matança do amor, porque já me vi matando os meus aos poucos, sem saber bem porquê. Se alguém souber por que fazemos isso, por que eu faço isso, por favor me diga: por quê?
recitado por Zel @ 6:13 PM
Enguiço Eis um amor que bate à porta em hora imprópria. Ousado, liga a lâmpada frouxa, joga a trouxa de roupa ainda manchada do sangue das costas lanhadas. Impõe cadeado no portão, como se não fosse sair mais, caminha decidido sobre minha paz. Esse temido amor de hora errada já vem assobiando pelo corredor. O trinco da porta é fraco e não sustenta; a oração é rala e pouco agüenta, o medo é pequeno e permissivo. A tal amor que chega inoportuno, eu me condeno. E porque me condeno é que me sinto vivo. (Flora Figueiredo)
Existem amores oportunos, aqueles que chegam nas horas em que a gente mais precisa, e aqueles que chegam para atrapalhar nossa vida e bagunçar nossa cabeça. E há aqueles que vêm e voltam, e nunca estão nem vão. Enguiçados.
recitado por Zel @ 4:51 PM
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