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..28.4.01..

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
(Ferreira Gullar)

Esse poema tem no livro de literatura que me acompanhou durante o colégio e desde a primeira vez que li me identifiquei muito :)

recitado por Clarice M. @ 1:32 PM

 

..27.4.01..

O DEUS MAL INFORMADO

No caminho onde pisou um deus
há tanto tempo que o tempo não lembra
resta o donho dos pés
sem peso
sem desenho.

Quem por ali passe, na fração de segundo,
em deus se erige, insciente, deus faminto,
saudoso de existência.

Vai seguindo em demanda de seu rastro,
é um tremor radioso, uma opulência
de impossíveis, casulos do possível.

Mas a estrada se parte, se milparte,
a seta não aponta
destino algum, e o traço ausente
ao homem torna homem, novamente.
(Carlos Drummond de Andrade)

Foi Gabriel quem me deu esse poema no aniversário dele. Adorei, idéia muito legal! Obrigado, Gábis, amei a mensagem.

recitado por Gui @ 11:08 PM

 

..25.4.01..

Da profissão do poeta

Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e ? expresso documento ?
a palavra conforme o pensamento.
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio de meu canto.
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
Sem se tornar com isso menos pura,
A voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto onde não seja a boca livre,
Onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ? ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem a esperança.
(Geir Campos)

Esses são versos do poema Da Profissão do Poeta que está na abertura da peça Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes. Eles exprimem muito do que sinto sobre o canto em minha vida.

recitado por Gui @ 11:57 AM

 

..16.4.01..

Horas breves de meu contentamento
Horas breves de meu contentamento
Nunca me pareceu quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha
Em tão compridos anos de tormento.

As altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sostinha;
Do mal que me ficou a culpa é minha,
Pois sôbre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com brandas mostras aparece:
Tudo possível faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desaparece.

Estranho mal! Estranha desventura!
Por um pequeno bem, que desfalece,
Um bem aventurar, que sempre dura!
(Camões)

recitado por Zel @ 2:56 PM

 

..11.4.01..

ALCOÓLICAS
I
(a Jamil Snege)

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua.
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida lavo-me
No estreito pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A vida é líquida.
(Hilda Hilst no seu Alcoólicas)

recitado por Gabriel @ 11:22 AM

 

..5.4.01..

Quero Escrever o Borrão Vermelho de Sangue

Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

(Clarice Lispector)

recitado por Clarice M. @ 9:18 AM

 

..4.4.01..

ATENÇÃO AO SÁBADO
Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita
de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço;
sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no
quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel,
aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado
de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada
comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado
banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao
vento sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com
grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro
freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar,
vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.
Domingo de manhã também é a rosa da semana.
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.
(Clarice Lispector)

Esse foi o poema escolhido pelo Gabriel para me presentear, na festa de aniversário dele. Minha cara! :)

recitado por Zel @ 12:33 PM

 

Oficina Irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

(Carlos Drummond de Andrade)

recitado por naomi . @ 10:04 AM

 

..3.4.01..

VENUS
II
Singra o navio. Sob a agua clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
Impeccavel figura peregrina,
A distancia sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a agua plana.

E a vista sonda, reconstrue, compara.
Tantos naufragios, perdições, destroços!
Ó fulgida visão, linda mentira!

Roseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivem dengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
(Camilo Pessanha, retirado de Clepsydra, edição crítica de Paulo Franchetti)

recitado por Gabriel @ 10:16 AM

 

..2.4.01..

Poema de Sete Faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche no vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Pra que tanta pernas, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é o meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(Carlos Drummond de Andrade)

recitado por Zel @ 10:26 AM

 


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