natureza
eu vejo através do vidro embaçado do carro as gotas imensas de chuva escorredo, olho a rua asfaltada e carros-carros-carros ao lado, pessoas correndo, guarda-chuvas (inúteis, pois chove demais) por todo o lado, e penso que há um mundo acima do mundo, sufocando o mundo real. somos como uma gigantesca capa de chuva, nós todos, a civilização. quantos metros abaixo deste banco no qual me sento está o verdadeiro mundo? há terra aqui embaixo, em algum lugar, eu sei. a chuva torrencial me dá uma certa apreensão, uma sensação levemente assustadora de que a natureza procura uma fresta. essa chuva toda, será ela mesmo um simples fenômeno corriqueiro? eu essas gotas têm propósito? imagino a água, inofensiva e necessária para a vida, fustigando esse chão de pedra, procurando um caminho. como em joão e o pé de feijão, imagino uma gota, uma só, dessa chuva cheia de propósito chegando à terra escondida há tanto, aqui embaixo da avenida paulista. há quanto tempo essa terra não sabe o que é uma gota de chuva, aquela gota de chuva? uma gota é suficiente, raízes imensas como de uma seringueira gigante crescem quase instantaneamente, arrebentando asfalto, jogando carros para dentro das crateras abertas pelas árvores furiosas e suas raízes crescendo magicamente. imagino trepadeiras, raízes verdes como cobras, folhinhas querendo ver a luz do dia depois de tanto tempo escondidas no escuro. eu queria ver árvores quebrando o cimento, a chuva molhando troncos e frutas imensas como jacas brilhando de molhadas. por minutos intermináveis, vejo a natureza dominando o mundo e olho fascinada ao meu redor, um mundo de verde e sombra. boquiaberta, admiro esse mundo que só eu vejo (os demais correm ao redor, indiferentes), meu corpo estremece de medo de tanta vida.
pisco, e volto ao táxi abafado. vejo a água escorrendo triste pela sarjeta, direto para as galerias (de cimento, sempre ele). eu queria descer do carro e largar esse guarda-chuva irritante, tirar sandálias e essa calça, a camisa branca, brincar na lama e depois me esconder pra passar o frio da chuva. meus seios jamais viram a rua, nunca receberam luz direta enquanto meus pés pisam o chão de asfalto. queria ver minhocas no chão, depois da chuva, onde estão os besouros? sei que há árvores prontas para dominar esse deserto, lá no seio da terra, em algum lugar aqui embaixo. às vezes esqueço que somos bichos e que isso tudo é só uma casca, fininha. um ovo sendo chocado, esperando pra (re)nascer.