ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ.
DE ARIANA PARA DIONÍSIO.
(hilda hilst)
I
é bom que seja assim, dionísio, que não venhas.
voz e vento apenas
das coisas do lá fora
e sozinha supor
que se estivesses dentro
essa voz importante e esse vento
das ramagens de fora
eu jamais ouviria. atento
meu ouvido escutaria
o sumo do teu canto. que não venhas, dionísio.
porque é melhor sonhar tua rudeza
e sorver reconquista a cada noite
pensando: amanhã sim, virá.
e o tempo de amanhã será riqueza:
a cada noite, eu ariana, preparando
aroma e corpo. e o verso a cada noite
se fazendo de tua sábia ausência.
II
porque tu sabes que é de poesia
minha vida secreta. tu sabes, dionísio,
que a teu lado te amando,
antes de ser mulher sou inteira poeta.
e que o teu corpo existe porque o meu
sempre existiu cantando. meu corpo, dionísio,
é que move o grande corpo teu
ainda que tu me vejas extrema e suplicante
quando amanhece e me dizes adeus.
III
a minha casa é guardiã do meu corpo
e protetora de todas minhas ardências.
e transmuta em palavra
paixão e veemência
e minha boca se faz fonte de prata
ainda que eu grite à casa que só existo
para sorver a água da tua boca.
a minha casa, dionísio, te lamenta
e manda que eu te pergunte assim de frente:
à uma mulher que canta ensolarada
e que é sonora, múltipla, argonauta
por que recusas amor e permanência?
IV
porque te amo
deverias ao menos te deter
um instante
como as pessoas fazem
quando vêem a petúnia
ou a chuva de granizo.
porque te amo
deveria a teus olhos parecer
uma outra ariana
não essa que te louva
a cada verso
mas outra
reverso de sua própria placidez
escudo e crueldade a cada gesto.
porque te amo, dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
madura, adolescente
e por isso talvez
te aborreças de mim.
(…)