olhando para dentro, vejo um universo. ele é tanto maior quanto mais eu exploro, é espantoso. há cenários inteiros, continentes, estrelas e cores, vegetação, animais (todos os que eu gosto, incluindo os elefantes pigmeus da minha imaginação), cheiros e águas (há muita, muita água). mas há, no meio dessa imensidão que eu não conheço, uma casa. ou melhor, um casarão, uma mansão. dentro dela moro somente eu. sou responsável pela comida, bebida, manutenção, limpeza. é uma casa grande e cheia de janelas, com madeiras escuras e poucos móveis. fecho os olhos e de fato me vejo andando descalça, sentindo a maciez da madeira sob os meus pés. há corredores enormes, e muitas portas que nunca abri.
descobri há pouco que existe uma ala especial nessa casa: a dos convidados. eles são convidados a entrar na minha casa, são recebidos na porta e conduzidos aos poucos pela casa. cada um, conforme a visita se dá, vai ser conduzido a uma parte dela. algumas destas pessoas passam tempo convivendo no meu lar, e eu as acomodo em quartos únicos, escolhidos especialmente pra cada uma. não há quartos reutilizados e nem divididos, cada um ocupa seu próprio cômodo. conforme a visita se desenrola, conduzo os visitantes para seus quartos, que eles ocuparão conforme queiram. a chave é trazida por eles, assim como a natureza do cômodo. eles abrem uma porta antes lacrada, e lá se instalam, com todas as suas cores e coisas. há quartos pequenos e bagunçados, quartos enormes e sem cortinas; há camas e sofás, chão de pedra e madeira, luz e sombra. cada ocupante imprime sua marca, seu cheiro, sua música, suas roupas e fios de cabelo espalhados pelo chão. há visitantes que ocupam seus quartos por muitos anos, outros por alguns meses ou dias. eu visito seus quartos, sento em suas camas e sofás, e conversamos, trocamos idéias, impressões, abraços, sensações. eles me mostram o que trazem em suas malas, desfilam com roupas pelo quarto, ou simplesmente se recusam a conversar, resistem. não importa como façam, eles ocupam seu espaço, aumentam minha casa.
às vezes eles se vão. vão embora para sempre ou por longos períodos, e eu ganho um quarto. mas não é um quarto desocupado, ele se torna pleno de quem não está: a ausência intensifica a presença. abro as portas devagar e já sinto o cheiro do dono do quarto. se fecho os olhos, quase sinto sua presença, mas daquele jeito que é só lembrança. às vezes há pó espalhado, por tanto tempo sem seu dono, camadas finas que cobrem tudo. o sol pode iluminar a poeira que paira, e pode haver cobertores desarrumados sobre a cama, quem sabe? ou será apenas uma cozinha muito bem limpa e com os utensílios guardados? não, quase ninguém deixa seu cômodo vazio subitamente. em geral, há um processo de despedida, com roupas sendo dobradas e sapatos arrumados, escovas de cabelo sendo limpas e colocadas na penteadeira. mas nunca deixam seus quartos como quem vai embora pra sempre, nunca. esquecem um pingente ou malas inteiras, como quem diz “vou voltar”. muitas vezes, voltam, e brincam de usar meias velhas, experimentam a cama de molas, sorrindo, e se lê no rosto a saudade tomando forma, espaços sendo ocupados pela lembrança.
piso com cuidados nos quartos deixados. passo as mãos pelas cortinas ou paredes, meus pés encontram atalhos e meu corpo se sente abraçado pelo vazio que não é vazio, porque ali está o espaço da saudade, onde ela se manifesta, se liberta como um cachorro solto no quintal. corre, corre, cheira os cantos, fica de barriga pra cima e quer espiar a janela. deitada em camas que não são minhas, de braços abertos olhando para o teto, suspiro e chamo meu cão-saudade, vem, querido, vem. saímos os dois, e eu fecho a porta sem muita força, encostando a testa no batente, até a próxima, até.