não me lembro de quando descobri que papai noel não existia. não sei se doeu ou se me incomodou, sei que sempre gostei de noites de natal. lembro de quando ganhei uma bicicleta, ela era vermelha, calói, é claro. tinha rodinhas, e não tive medo de andar. eu vestia um vestidinho vermelho de pano bem fino, sem alças e com babadinhos. eu era uma criança magra e com pouco cabelo. só tinha olhos.
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e há essa sensação forte que sempre volta nessa época, tenho um resquício de emoção ainda aqui, de quando minha mãe nos mandava separar nossos brinquedos velhos. todos. tínhamos que manter somente um deles, nosso preferido, pois os demais seriam doados às crianças do orfanato ou das creches da igreja, onde ficavam as crianças pobres. não tenho lembranças de imagens, só ficou o sentimento: é uma mistura de felicidade, culpa, pena e dever cumprido. minha mãe doava, ou melhor, nos fazia doar aqueles brinquedos que passavam a maior parte do tempo jogados pelos armários para aquelas crianças que não tinham quase nada. e elas, diferente de nós, abraçavam nossos brinquedos e ficavam felizes. eu diria que havia olhos brilhando e sorrisos, mas eu não lembro de uma imagem sequer. só sinto de novo aquilo tudo, e meus olhos se enchem de lágrimas.
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e houve um natal que lembro com dor, pois foi ali que deixei de ser criança. eu queria muitos presentes. queria coisas bonitas, bonecas, roupas e, especialmente, patins. eu sonhava com aqueles patins da pista de patinação que meu pai de vez em quando nos levava, eles eram lindos e pesados e muito, muito “profissionais”. eu adorava patinar, tinha 10 anos. sabia que minha avó nos daria patins (de alguma forma descobrimos) e estava radiante. na hora dos presentes, abri o pacote, e eles estavam lá, os patins. mas não eram o que eu imaginava: eles eram mais simples, mais frágeis, “de criança”, de plástico (de plástico!). sei que fiz uma cara feia, de decepção. pois minha mãe imediatamente me reprimiu, não sei se foi um olhar ou um beliscão, dá na mesma. doeu ainda mais, e saí para o quintal com os “patins-nhos feios”. lembro da noite fresca e do céu bonito, eu fiquei olhando as estrelas, falando comigo mesma, sozinha. concluí que tinha sido egoísta. aquele era o presente de uma avó muito pobre, que certamente tinha dado o melhor presente que podia, o mais próximo do que eu queria ganhar. ela deve ter ficado triste com minha insatisfação (será? ou as avós entendem os egoísmos infantis?), e eu me senti muito, muito culpada, ingrata e triste. não foi preciso que ninguém me repreendesse com palavras, eu já tinha desenvolvido meu confessionário interno, aquele que tudo vê e a tudo condena. eu calcei os patins e patinei pelo quintal, com lágrimas escorrendo. quando acabei de chorar por mim mesma, fui até a minha avó e agradeci o presente, emocionada.
não devíamos aprender a nos julgar e condenar, principalmente aos 10 anos.
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uma vez ganhamos um ferrorama. o melhor presente do mundo, e o mais inútil. até hoje não sei que graça víamos naquilo, um brinquedo sem a menor interação: ficávamos os três embasbacados na frente do trenzinho que ia e vinha. uns bobos.
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a maior inveja de presente sempre foi da minha irmã: ela ganhou uma vez aquele burrinho que dá coices, eu era louca pra ter ganhado aquilo. mas era dela, sabe como é irmã mais nova. houve também uma boneca numa festa do trabalho da minha mãe, a boneca bombom. eu ganhei outra coisa, porque era “mocinha” (e nem lembro o que era, eu só tinha olhos para a boneca). droga, eu queria a boneca de cabelo de lã, mocinha ou não.
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o melhor presente que eu dei foi uma TV de 29” pro meu pai. ele pedia a tal TV há uns 5 anos, e nunca tive grana. todo ano nós arranjávamos uma caixa de TV velha, enchíamos de tranqueiras e o papai recebia a TV-de-mentira. ele ria, mas sei que todo ano achava que era mesmo a tal TV. pois um ano era a TV mesmo, e ele ficou feliz como criança. nunca vou esquecer.
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houve um ano que ganhei um jogo de tupperware (com 3). foi bom, uso até hoje. melhor do que o presente que eu dei: óculos escuros de aro branco, de plástico, sem proteção UV. é que era inimigo secreto, entendam.
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e todo ano tem aqueles cartões lindos que meu pai escreve pra mim, começando assim: “gatão do papai,” e aí eu choro escondido, porque é muito lindo.
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teve também um natal que chorei sentada na sala, sozinha no escuro. e não é que eu estivesse sozinha, não. ali no quarto ao lado, dormindo, estava aquele que eu considerava o homem da minha vida. liguei para os meus pais e para os meus amigos, as lágrimas rolavam enquanto eu desejava feliz natal e desejava estar com cada um deles. tudo o que eu queria era companhia para essa noite que eu gosto, um abraço, atenção, amor. vocês sabem, essas futilidades pequeno-burguesas.
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eu nem acredito que vou dizer isso, mas não vejo a hora de passar o primeiro natal com um filho meu. acho que vou chorar e rir ao mesmo tempo. natal me lembra família, e isso é muito, muito bom.