incômodos de mudança de classe

eu sei que não é bonito reclamar de barriga cheia, mas com licença que eu sou assim mesmo, ingrata. há 3 semanas eu venho para o trabalho de ônibus fretado, aquela coisa extremamente cômoda e econômica, além de ser ótima desculpa para não ficar no trabalho até mais tarde. ônibus confortável, pontual e vazio. posso dormir, ler, olhar pro nada, durante 40 minutos. tudo muito bom e tudo muito bem, mas sempre tem um “mas”. e juro, não é o horário, eu acostumei a acordar às 6 horas, até tou gostando. é que tem a maldita moça-loira-paulistana-padrão. pra quem não sabe ou não parou pra identificar, abstraia: ela nasceu em família “bem”, o pai é engenheiro e a mãe é dona de casa ou pedagoga/psicóloga; 30 e poucos; loura de cabelão comprido; nariz de árabe ou judeu; magra, estatura mediana, sem maiores atributos físicos — aquele tipo que o moço-paulistano-padrão adora; voz de gralha; preconceituosa politicamente correta (não, não é paradoxo); usa bolsa louis vuitton (falsificada, claro); usa bota de bico fino; fala pelos cotovelos, sempre com muita propriedade; é engenheira, modelo mulher-que-casou-mas-é-independente; tem uma filha pequena chamada maria lúcia (nome composto, básico), que é um gênio de criança; tem opinião sobre absolutamente tudo; faz inúmeras perguntas sobre sua vida pessoal, só pra ter oportunidade de falar da dela.

muito bem, essa é a figura que pega o ônibus no mesmo ponto que eu. agora abstraia minha pessoa antes da 7 da manhã. pense em algo como uma capivara com dor de dente ou um rinoceronte com dor de barriga. imagine que eu mal consigo me lembrar como diabos cheguei ali naquela calçada e fico repassando lentamente (até porque eu não tenho outra velocidade a esta hora) as coisas que deveria ter feito e não fiz. comida dos furões? ih, tenho que pedir pro fer ver. escovei os dentes? não, claro que não, esqueci. penteei o cabelo? ha ha ha! fechei a porta? ah, tenha dó, fechar porta pra quê? tinha conta pra pagar? e por aí vai. pois todos os dias eu caminho me preparando para o ataque da burguesinha-matraca, esperando que não seja nesse dia lindo e azul (ou chuvoso e frio, tanto faz) que eu vou finalmente dar um catiripapo no meio da cara certinha dela, pra ver se ela me dá uns dias de sossego com a boca toda quebrada.

mas tá, eu confesso: a verdade é que sei que nada disso vai acontecer e eventualmente nos tornaremos quase-amigas. ela vai até me dar uma receita de pavê de bolacha champagne e eventualmente me convidar pra festinha de 3 anos da malu (já fiquei íntima) naqueles bufês cheios de crianças riquinhas e pentelhas. olha, não é fácil essa vida pequeno-burguesa. eu gostava quando era pobre de fato, estudava lá na penha (ok, o nome é jardim nordeste, ali ao lado da vila ré) e conhecia pessoas interessantes. mas pensando bem, o penha-lapa cheio às 6 da tarde… não. vou pedir amanhã mesmo uma receita de brigadeirão de microondas pra fulaninha e não se fala mais nisso.

Deixe um comentário