o dia dos anjos da guarda

hoje é 31 de maio, dia de uma série de coisas mas especialmente dia do aniversário do meu pai. ele faz hoje 56 anos e, acreditem em mim, isso é uma coisa muito estranha.

meu pai é marceneiro, pescador mas é sobretudo um mentiroso profissional, para o bem e para o mal. ele é provavelmente uma das pessoas mais divertidas e interessantes que você poderia conhecer na vida e boa parte desse lado interessante é devido à imaginação sem limites que ele tem.

quando éramos crianças ele sempre tinha uma história mirabolante pra contar. eram histórias imensas, com bruxas e monstros, castelos, mágicas, cavaleiros e tudo o mais que você quiser. ele interpretava os papéis, fazia os suspenses e nos deixava mortos de medo e curiosidade. me lembro das caras dos meus irmãos (provavelmente iguais à minha) com olhos arregalados e boca aberta esperando a bruxa chegar. “ela apertava os dedinhos deles pra ver se estavam gordinhos” ele contava a história de joão e maria e usava nossos dedinhos como exemplo “HMMMMM gordiiiinhos” (eram os nossos dedos) e morríamos de medo.

meu pai chama dinheiro de funfa, cachorro de cauaco, aperitivo de acepipe. ele mandava a gente mumir e papir senão ia pro castigo. ele ria da gente quando minha mãe dava chinelada e quando estávamos de castigo. ele fazia a gente (os irmãos) ficar amiguinho quando estávamos com ódio um do outro. ele mandava a gente buscar o chinelo pra apanhar e acabava não batendo em ninguém porque morria de rir da nossa cara de medo. minha mãe dava bronca nele tanto quanto dava na gente, porque ele se empolgava nas brincadeiras e a gente sempre se machucava. meu pai fazia espadas de luta de madeira que eram verdadeiras armas (e dava pra gente brincar), fazia carrinho de rolimã e comprava luvas de boxe pra ver quem nocauteava quem (ele sempre ganhava e a gente sempre chorava).

meu pai nunca foi um bom marido provedor. ele sempre foi mais o filho mais velho da família que o pai propriamente dito. ele ganhava dinheiro e gastava tudo em azeitona, chocolate, roupas bonitas pra minha mãe, patês franceses, coisas que não tínhamos dinheiro pra comprar. nós, as crianças, sabíamos disso; ele não. ele trazia animais pra casa, à revelia da minha mãe, ele convidava todos os peões das obras que trabalhava pra almoçar em casa (sem avisar e sem ter comida pra todos). ele emprestava dinheiro pra quem precisava mais que a gente e nós ficávamos à mingua. ele brincava de “dançar” com o carro na estrada quando tocava rita lee e minha mãe queria matá-lo (nós adorávamos, sempre). ele nos levava pra ver os peitos dos travecos da indianópolis — passava devagarinho pra gente poder gritar pros travecos (que adoravam e mostravam os peitões).

aos domingos ele nos levava pra padaria e comprava gibis, um pra cada. a gente gostava da mônica, ele gostava do fantasma — o espírito que anda! sempre tinha coisas boas de comer aos domingos de manhã. todo santo dia ele cantava aquela música maldita na hora de dormir, super desafinado: “já é hora de dormir… não espere a mamãe mandar…”. quando ele ficava bravo (raríssimo) ele ficava MUITO bravo e dava medo. ele sempre cozinhou muito bem e a gente amava as comidas de pai.

num dos aniversários da minha mãe ele fez uma surpresinha: nos fez pintar a cozinha inteira de guache, com as mãos, os pés, muitos parabéns pelas paredes. adicionamos as patinhas dos cachorros nas paredes (e na casa). fizemos um bolo que deu errado, queimou e estragou o forno. minha mãe chegou do trabalho, cansada, e não sei como conseguiu não chorar, pobrezinha. acho que comemos outra coisa, sei lá.

meu pai conta as histórias mais engraçadas e absurdas e ele jura por deus que é verdade. aliás, ele acredita que tudo o que ele conta é verdade, o que acaba tornando a mentira em verdade, certo?

se minha mãe é meu porto seguro, o pé no chão, meu pai é tudo o que voa, um espírito criador, irresponsável e livre. meu pai me ensinou e ensina ainda que viver é sonhar, sim. eu admiro sua juventude eterna, sua criatividade, seu poder de invenção e de fuga de tudo o que no mundo é incômodo e chato. meu pai será tudo nessa vida menos um chato entediante. ele a cada ano se distancia mais da realidade e se torna verdadeiramente um louco sonhador.

é graças a ele que eu gosto de sonhar, brincar, contar histórias e fantasiar (mentir?). ele é o meu big fish particular e mesmo quando ele se for eu terei tanto dele pra lembrar e reviver que ele será sempre vivo em mim e em tudo o que eu conseguir tocar com esse desejo de ser mais do que se é, de ver além do que se enxerga. sempre verei o mundo um pouco através dos seus olhos, um mundo onde todos são bons e geniais, onde tudo é maravilhoso, intenso, especial. todas as viagens serão inesquecíveis, todos os amigos serão eternos e todos os dias serão memoráveis.

as contas pra pagar e problemas pra resolver? ficam todos pra minha mãe, que nasceu taurina exatamente pra isso 🙂

meu papi, o mais querido, me ensinou a ver o mundo além da toca do coelho. só por isso ele merece parabéns e todo o amor que eu posso e quero dar. e eu esqueci de dizer: o meu pai de quando eu tinha 5 anos é exatamente o mesmo de hoje. ele nos trata do mesmo jeito, conta as mesmas histórias e faz as mesmas gracinhas. pra ele, jamais deixaremos de ser criança, exatamente como ele.

0 comments to “o dia dos anjos da guarda”
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  1. Quando eu quero chorar, basta entrar aqui!

    Nem preciso fazer esforço, ainda mais quando você fala do nosso pai e da nossa mãe…

    Confessa que você acabou o texto com lágrimas nos olhos!

    Lindo. Beijo

  2. keké, eu escrevi chorando e choro cada vez que releio 🙂

    pessoal, meu pai agradeceria se tivesse lido isso tudo aqui. ele vai pra zoropa logo logo e sentiremos saudades das mentiras dele assim como sentimos falta da falta de noção do meu irmão…

  3. Parabéns pro seu Ivan!

    Eu adoro quando ele vai fumar comigo na janela e eu, toda preocupada com seu ódio de cigarro, fico jogando desesperada a fumaça pra fora, enquanto ele me olha com cara de moleque e rindo solta aquele fumacê todo pra dentro da sala! :o)

    beijoca!

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