sempre gostei de faxina, desde pequena. vejam bem: não que eu goste exatamente da atividade física de revirar tudo na casa pra limpar, o que me agrada é a sensação de tirar coisas do lugar e limpar a sujeira escondida, avaliar o que está perdido pela casa e jogar fora o que não serve mais. tem a contrapartida, também, igualmente deliciosa: guardar nos devidos lugares o que é importante.
desde que empacotei a mudança do novo apartamento (em janeiro) não tinha mais organizado nada que não fosse essencial para o funcionamento da casa, o que significa que a papelada ficou toda entulhada. enfiei em pastas e sacolas tudo o que se pode imaginar feito de papel: comprovantes de pagamento, faturas, contratos, cartas, cartões, postais, desenhos, recibos, notas fiscais, tudo misturado.
pois essa semana, me deu a louca: fiz uma faxina nos papéis. precisava encontrar algumas coisas, então aproveitei e arrumei tudo. as contas e recibos de pagamento são fáceis: coisas com mais de 1 ano joguei fora, sem dó. contratos e comprovantes de pagamento guardei. organizei por tipo, em pastinhas separadas. coisas do apartamento, do carro, cartão de crédito, luz, telefone, tv a cabo, contas de banco.
encontrei também bilhetes antigos e cartas. a verdade é que eu não costumo guardar cartas, principalmente porque quando as leio de novo parece que estou invadindo a vida de alguém que já não sou mais eu. é bonito esse negócio de cartas antigas e esses livros de troca de cartas entre pessoas (será que isso vai desaparecer pra sempre graças ao mundo eletrônico/digital?), mas não me importo. guardo as cartas enquanto elas ainda são dirigidas à pessoa que sou hoje (ou seja: elas têm prazo de validade relativamente curto :))
as cartas e bilhetes que outros escreveram pra mim eu reli e joguei fora sem maiores dramas (afinal, não eram mais pra mim). mas encontrei uma carta minha que, sem saber, escrevi pra mim mesma no dia 20/dez/2002. na verdade ela começou a ser escrita nessa noite, mas durou pelo menos mais 1 mês. reconheci o que escrevi de uma só vez, nesta noite, e os adendos semanais no próximo mês (a caligrafia e o tom mostravam bem meu estado de espírito). acho que, procurando bem, eu encontraria algumas lágrimas secas no papel e aquela pontinha amassada certamente foi uma quase destruição da pobre.
mas ela sobreviveu ao cataclisma, assim como eu. ela não tinha a intenção de ser pra mim mesma, mas eu jamais a entregaria. ela dizia tudo aquilo que eu em voz alta jamais tive coragem de dizer pra mim mesma e nem pra ninguém: que eu mereço ser feliz; que eu tenho o direito de dizer não a tudo o que me faz mal; que eu quero e vou exigir ser tratada com o mais alto grau de respeito; que amor não é uma palavra, é atitude.
fiquei feliz por esta carta jamais ter sido entregue ao seu destinatário, pois seria mais um pedaço do meu coração e da minha alma entregues e perdidos num oceano de ego e confusão emocional disfarçados de filosofia, travestidos de palavras. palavras que eram caóticas e de sentido duvidoso não por acaso, mas porque de fato não havia direção, sensibilidade, caminho. os parágrafos finais da carta são frases curtas de despedida e tristeza, mas nunca de desesperança.
essa carta chegou com quase 3 anos de atraso para sua verdadeira destinatária: a sobrevivente de dezembro de 2002, eu hoje. foi glorioso constatar que aprendi uma lição. procurei e conquistei exatamente o que queria de mim mesma e dos meus relacionamentos: verdade combinada com paixão, amor, companheirismo e principalmente afeto. viver cada dia, às vezes de mãos dadas com o outro, às vezes por mim mesma, sempre pensando em conjunto. tudo o que não se encaixa nessa fórmula foi eliminado, assim como aquele modo de vida de então foi descartado.
não diria que mudei minha vida sem dó e sem sofrimento, mas graças à tentativa ganhei outra descoberta de presente: arrancar um espinho que machuca dói na mesma medida que alivia. a ferida lateja por um tempo e é possível que você sempre se lembre dela, mas não existe nada nesse mundo mais importante e poderoso que fazer uma escolha que priorize você mesmo, sua vida e sua felicidade. livrar-se dos que nos fazem (ou do que nos faz) mal é, sempre, a escolha de arrancar ou não o espinho.
meu espinho era um relacionamento, sim, que poderia ser simplificado a uma pessoa. por algum tempo eu me iludi, colocando as coisas nestes termos simples: a culpa é do outro. mas quando li a carta, fiquei feliz em perceber que já há 3 anos eu sabia que o problema não é nem nunca foi o outro ou do outro. o problema sempre foi meu, que fiz as escolhas desde o início e me deixei machucar constantemente (ao mesmo tempo que implorava pra não ser machucada). nada jamais me prendeu a essa armadilha senão minha própria vontade.
me encantei com a rosa e a agarrei, com todos os seus espinhos. queria que a rosa não tivesse espinhos, mas uma rosa é uma rosa. por pouco não morro com as mãos sangrando, agarrada à rosa que eu queria que não fosse rosa. descobri o significado da expressão “abrir mão”.
fiquei sem a rosa e ganhei a mim mesma de volta, uma troca bastante justa. e foi bom, pois acabei voltando a procurar a flor que sempre mais amei na vida: o girassol. quente, generoso, denso de vida silenciosa, alimento.
reli minha carta pra mim mesma com um misto de tristeza e orgulho e coloquei junto dos extratos antigos (todos no vermelho) de alguns anos atrás: no lixo. hoje, graças a mim mesma, vivo num mundo definitivamente azul (incluindo a conta bancária).
Organizo todos os meus documentos e mantenho com um amigo especial o hábito de escrever cartas. Nunca as releeio, porque prefiro reler o sentimento aos documentos, embora estes nunca sejam os mesmos.
Beijo!
parabéns. nesse momento de mi vida tenho que arrancar um baobá, tão grande que deixei o espinho crescer. se sobrar alguma coisa de mim estou no lucro. bj
Definitivamente Zel, azul é uma cor boa… se não ótima…
Prazer em conhecer, Fabíola ;
ps.: ilustre desconhecido… só por enquanto. Minha pretensão é tornar-me arroz de festa, hehehe!
Que lindo, Zel!!!Nem respondi o que vc escreveu láá embaixo, né? Mas melhor deixar morrer a coisa, mesmo.
Sabe o q esse texto me lembra? Vc vai me achar louca, mas é a sensação de ter sede e beber água. Eu leio esse texto e parece que bebi água. Ele lava, ele alivia, ele mostra exatamente como vc se limpou. Lindo! Muito…
Tão bom esse seu post! Eu estou neste momento tirando um espinho que eu nem sabia que era espinho e que eu mesma fui enfiando cada vez mais fundo… Adorei o significado de “abrir mão”. Qdo a gente vê que “abrir mão” é isso e não “desistir/derrotar/esquecer”, então as coisas ficam muito mais fáceis e fazem muito mais sentido.
Bjs
saiu lagriminha
me vi em você 🙂
Isso me fez lembrar de coisas que jamais deviam ter sido entregues… e hoje acabo recebendo respostas delas, porém, não a tempo suficiente de compreendê-las.
Bad timing.
Precisava ler um post desses hoje.
Agora eu sorrio.
🙂
bj
Sempre leio seu blog e raramente comento, mas esse post mexeu mto comigo… talvez seja pq estou precisando rever minhas escolhas e talvez escrever uma carta pra mim mesma, até pra organizar os pensamentos. Vou voltar e reler esse post mais vezes. Obrigada!
um beijo carinhoso
Babi
ah, o azul… a cor da liberdade!
aqui especialmente pra você, um poeminha da clarice lispector que, coincidentemente acabei de publicar no blog..
“Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada… Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro…”
… é lindo o girassol no qual você se transformou!
beijo, 🙂