sobre leitores

gosto bastante de ler, sempre gostei, desde pequena. não lembro quando comecei a ler, mas foi cedo. ganhei meu primeiro livro de uma tia toda cabeça, ela me deu o planeta lilás e desde então não sei o que é uma vida sem livros. ia dizer o quanto leio por mês, mas percebi a tempo que esse número é uma bobagem e vai contra tudo o que vou dizer mais pra frente 🙂

acho que os pais têm papel fundamental na forma como nos relacionamos com o mundo, incluindo o mundo dos livros. meu pai, por exemplo, não dá a menor bola pra qualquer tipo de coisa escrita: o lance dele é trocar idéias e informações, nisso ele é expert. e aqui entre nós, ele sabe muito mais coisas que muita gente que lê, viu? tem uma memória incrível e é um ouvinte muito atento, além de ser curiosíssimo. um tipo de inteligência diferente, que me fez entender depois de adulta que nem só de livros vive a cultura de uma pessoa. nem discuto com quem despreza outras formas de adquirir cultura que não através dos livros. pura perda de tempo.

já minha mãe é de outro estilo: ama ler, sempre devorou livros a vida toda. não é à toa que eu escrevi “ama ler” e não “ama os livros”: ela é consumidora de literatura de todo tipo, mas não tem fetiche pelo objeto. acredito que veio do exemplo dela minha fome de leitura. é difícil não sucumbir quando se observa alguém que você ama dedicando tanto tempo a uma atividade… dá vontade de experimentar! pois experimentei e viciei, pra sempre.

dessa mistura de estilos saí eu, que acabei descobrindo o meu próprio: sou devoradora de livros, compro muito mas não me apego a eles. há alguns anos me desfiz de 2/3 dos meus livros, sem nenhuma pena. não me arrependo, embora às vezes lembre de algum deles com saudade (vontade de reler. eu releio muito). possuir livros, vê-los na minha casa, não me dá nenhum prazer especial, mas acho prático: quando quero reler alguma coisa, está à mão. quando preciso consultar algum assunto, está fácil. confesso que com o google cada vez mais mágico essa necessidade diminuiu, mas ainda há muita coisa que só acho nos livros que já li.

literatura, pra mim, é pura e simplesmente lazer e prazer. eu sequer chamaria de arte, considero entretenimento e, ainda nessa categoria, uma forma de exercitar meu intelecto. vejo a literatura mais ou menos como o cinema: é um meio de contar histórias, transmitir idéias, provocar idéias em outras pessoas. evoluímos de um sistema de história oral (cada vez mais abandonado) para a história escrita e em algum momento esse conceito simples de usar o verbo para se comunicar se deturpou, transformando-se em objeto de desejo, em fetiche. um livro é hoje um objeto de desejo; as idéias e histórias se transformaram em estandartes, carregados com uma paixão que é quase infantil. as pessoas se esqueceram da diversão!

acho triste observar “leitores profissionais”, que inclusive se vangloriam dos seus “feitos”: li todos os clássicos; li [coloque aqui o nome de um livro considerado “difícil”] e gostei/desgostei. dão suas opiniões de forma séria e discutem interminavelmente, como se o que eles pensam fosse de fato relevante. classificam obras e autores como se algué desse bola, definem o que é literatura e o que não é, cada um segundo seus padrões subjetivos. cheios de vaidade, se consideram cultos e intelectuais porque lêem. como se ler “clássicos” tornasse alguém mais inteligente, culto ou intelectual. acumulam nomes de livros e autores nos seus “checklists de leitura” mas não estabelecem relações entre diferentes meios, não pensam fora da caixa.

existem fetichistas-de-livros que são de fato cultos, inteligentes e intelectuais? claro que existem, mas são raros. a enorme maioria dos fetichistas-de-livros é composta de pessoas vaidosas que, com dificuldade de se sobressaírem de outra forma, usam os livros como alavanca. precisam de uma muleta (os livros lidos) para mostrarem que são diferentes dos demais, que fazem parte de alguma elite, a dos “lidos”. e não lêem qualquer coisa, não, porque não têm tempo a perder (seja lá o que isso significa): lêem somente o que a intelligentsia considera bom. afinal, eles não podem perder seu precioso tempo com sub-literatura.

o que mais me irrita em pessoas com este perfil (além de serem chatas, é claro) é que apesar de toda a pompa, nunca se debruçaram de fato em textos com conteúdo para estudo e leram com olhos de investigador e pensador. não sabem se comportar como filósofos, são meros “etiquetadores”: isso é BOM e isso é RUIM. basta 5 minutos de conversa para perceber que eles nunca investigaram de fato textos filosóficos ou literários que se prestam a isso, estabelecendo relações, tirando conclusões e contribuindo com suas próprias idéias. em outras palavras: nunca dialogaram com nenhum texto; esse tipo de leitor só consegue falar sozinho.

já não tenho mais paciência de ler/ouvir gente assim. durante minha década dos vinte eu era atraída por esse tipo, não percebia que eles eram vazios, meros repetidores de idéias alheias (de preferência idéias controversas, pra dar mais ibope); hoje em dia tenho vontade, antes de iniciar qualquer conversa, de fazer uma sabatina de pensamento filosófico (que não é a mesma coisa que ter lido livros de filosofia, tá?) e ver no que dá. se não passar na provinha básica, só vale incluir na pauta da conversa assuntos divertidos e sem grandes profundidades. ficam proibidas conversinhas pseudo-intelectuais, já não tenho mais idade pra ouvir bobagem sobre assunto sério.

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outro dia discuti uma coisinha com meu amigo do pequenos delitos que achei interessante a ponto de virar um texto aqui: a forma como certos textos ou idéias nos tocam.

a questão começou assim: ele tem aversão ao pequeno príncipe por causa da famosa frase és eternamente responsável por aquilo que cativas (ou algo assim). a famigerada frase foi escrita num bilhete dado a ele por uma namoradinha de infância e ele ficou incomodado com tamanha responsabilidade. como assim, eternamente responsável? 🙂

independente de gostar ou não do livro (eu gosto), tentei explorar a seguinte idéia: o autor é ruim ou o leitor tem problemas particulares com o assunto? acredito de verdade que o incômodo com a frase não tem origem na idéia que ela transmite, mas antes no universo do leitor que a interpreta. se não houvesse do lado do leitor alguma questão não resolvida quanto a assumir responsabilidade por aquilo que cativou, neste exemplo, acredito que nenhum incômodo surgiria em relação ao romance. minha pergunta pra ele foi — e se a frase escolhida para o bilhete de amor fosse do romance romeu e julieta, você teria ficado com medo da moça se matar por você ou teria achado só romântico?

a idéia não é provar se estou certa ou errada e nem esmiuçar o pobre leitor, mas fazer pensar sobre a seguinte idéia: textos e/ou idéias nos provocam reações, mas são agentes passivos. nós, quando nos dispomos a ler, ouvir ou ver somos os agentes ativos. é muito mais interessante e rico observar nossas reações e entendê-las do que emitir opinião sobre o que nos despertou. qual é o benefício intelectual ou emocional de reagir a algum estímulo protestanto ou concordando veementemente? essa é a nossa reação mais primitiva: rejeitar ou aceitar. pensar-se, refletir (espelho, ahn?) é muito mais elaborado e, aqui entre nós, a parte mais bonita de ser humano. não devíamos nunca deixar em segundo plano essa capacidade única da nossa espécie.

da próxima vez que uma idéia provocar você, tente perceber-se antes de simplesmente reagir contra ou a favor da fonte de estímulo. garanto que será mais útil, muito embora eu não possa esconder um fato: pode não ser tão prazeroso assim ver esse lado do mundo (o de dentro). reagir ao que está do lado de fora com opiniões (boas ou ruins) é muito mais fácil e seguro.

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boa semana a todos 🙂

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  1. Menina … esse tema dá assunto que não acaba mais. O povo das teorias da recepção passa a vida estudando isso: a maneira como o leitor percebe o texto. Sou totalmente fascinada por isso.

    O fato é que a gente lê e viaja (ou não). Viaja para dentro, dialoga com o texto, vai dizendo “è isso mesmo, aconteceu assim comigo”, ou “tá doido?” E nesse embalo, a gente vai lembrando de tudo o que já leu antes, de todas as situações que já viveu, de tudo o que o texto evoca.

    Para você ver, na prática, como isso funciona: outro dia, você botou aqui um post sobre dietas. Imadiatamente viajei na lembrança da única vez na vida em que cometi tal desatino. O resultado está no post novo do Fruit … Minha dieta acabou tendo resultados inesperados … rsrsrs

    beijo você

  2. Oi Zel,

    Tenho quatro filhos(22,21,20 e 11 anos).Leio

    muito, meu pai idém…inclusive tem quatro

    livros publicados…minha família quase toda vive rodeada de livros, exceto minha mãe. Achei que com isso eu pudesse ter pelo menos um filho que puxasse prá nós….aquela coisa de exemplo, como vc citou ,no caso da sua mãe.

    Bom…pelo menos elas devoram os livros de medicina , já que é o curso que escolheram…menos mal.

    um abraço

    fernanda

  3. Eu acredito que os pais podem influênciar hábitos como a leitura (através do processo que vc explicitou tão bem), mas essa capacidade está relacionada a muitas outras, aquilo que vulgarmente resumimos na palavra “exemplo”. Minha mãe me ensinou a ler muito cedo (quando fui p/ a escola já lia “livro grosso”), mas meus pais nunca foram espacialmente dedicados à leitura. De todos os meus irmãos, fui o único que desenvolveu essa paixão pela leitura e pelos livros (sim, eu sou fetichista, gosto de possuir o objeto livro, tocar, cheirar, ter por perto). Tenho 2 filhos, um deles tem a mesma paixão que eu e o outro não lê nada, apesar de (no estilo do seu pai) ter informação e opinião sobre quase tudo.

    Quanto ao Pequeno Príncipe, continuo não gostando. Na verdade, essa minha implicância foi sendo reforçada ao longo da vida, provavelmente por ter visto tanta gente medíocre lançando mâo da tal frase para justificar suas chantagens emocionais.

    No mais, tô com você e não abro. 🙂

  4. Muito bom o seu texto… Tem um livro do Shoppenhauer (xii, não sei se é assim que se escreve), pequenininho, de bolso, super fácil leitura, que ele fala exatamente disso: da arte de ler. E critica exatamente as pessoas que só lêem e não raciocinam. Diz que a maioria das pessoas se ocupa com os pensamentos alheios, sem pensar no que aquilo siginifica (e se significa realmente alguma coisa pra elas). Você iria gostar desse livro, eu imagino… E entendo seu amigo perfeitamente. Eu, por exemplo, não gostei de Dom Casmurro, mas quando se diz isso as pessoas te olham como se tivesse matado alguém à queima roupa. Reconheço que é considerado um dos melhores livros da literatura brasileira, mas não gostei e ponto.

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