1 mês, 30 livros: day 13, a book that reminds you of something/sometime

eu acho essa pergunta bem esquisita, porque pra quem vive com livros ao seu redor e lê com frequência, pode ser qualquer um, não? 😀

mas vou explorar a questão, e trazer um livro que marcou um momento importante da minha vida como leitora: antologia poética, carlos drummond de andrade. (espero estar lembrando certo! se alguém conhecer e quiser corrigir, me ajude a indicar qual é o correto, pois não tenho esse livro)

meu primeiro contato com esse livro foi com 16 anos (em 88, portanto :D), porque fui uma adolescente muito interessada em poesia, como deve ser. esse livro foi emprestado na biblioteca modestíssima da escola estadual onde eu estudava, o MMDC, graças a um trabalho em grupo que consistia em apresentar diferentes poetas. cada grupo ficou com um poeta, e nós ficamos com drummond. decidimos fazer uma apresentação teatral, usando as poesias como fio condutor e recitando alguns fatos da vida do poeta entre uma poesia e outra. sem modéstia, o trabalho ficou incrível! não lembro tudo de cabeça, mas apresentamos pranto geral dos índios (um dos meus poemas preferidos, ever), a bomba atômica, outros que não consigo mais lembrar e a máquina do mundo, recitada por mim.

eu havia quebrado o pé jogando bola, e estava engessada até o joelho. me lembro do calor das luzes no palco (tinha palco!) e do nervosismo de declamar um poema tão complexo, tão lindo (e tão longo). havia palavras naquele poema que eu tive que pesquisar, porque não conhecia. e eu lia bastante desde pequena, meu vocabulário era bom! mas coorte, por exemplo… aprendi naquele poema. e aprendi a ler poesia também, e isso foi uma caixa de pandora pra mim. todo um mundo novo de significado apareceu graças a esse livro.

o livro comenta todas as poesias selecionadas, em muitos detalhes. destacam a escolha de palavras, a estrutura das frases, a métrica, a rima, além de contextualizar a poesia dentro da obra. é como um raio-x da poesia! e não me entendam mal: não acho que poesia precisa de explicação. poesia é ponte entre prosa e música 🙂 pode simplesmente ser bonita, soar bem, falar direto ao nosso senso estético ou de ritmo/rima, e tudo bem. mas, ah, foi tão bonito e excitante descobrir como além de ser tão bonito tudo aquilo podia ser também alimento pro pensamento, aprendizado do idioma!

é difícil explicar como foi bonito esse momento da descoberta. até porque foi uma epifania muito nerd, convenhamos 🙂 mas foi bonito, sim, e ainda guardo comigo o encantamento da leitura da poesia em camadas. até por isso acho que prefiro mil vezes ler que ouvir poesia, por mais bonito que seja (quando não é cafona, verdade seja dita).

ainda sou fã de poesia, e meus poetas preferidos são bandeira, e. e. cummings, adélia prado e hilda hilst. pois é, drummond não entra na lista 🙂 é meu padrinho de poesia e gosto dele, mas já não é mais um preferido.

mas a máquina do mundo, gente… que poema.

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

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