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FEEDBACK — Parte 5

[Este post é parte de uma série numerada. Para ver todos, clique aqui. Para ler o anterior, clique aqui]

A TOCA DO COELHO DA ALICE

Faça uma pausa e venha comigo, porque não dá pra seguir com esse assunto falando só da parte fácil, que são as técnicas e passo-a-passo estilo livros para executivos de R$1,99, sem olhar um pouco pra dentro.

Decidi escrever esse “capítulo” quando percebi que faltava explorar um componente fundamental do feedback: entender as motivações de quem está dando o feedback. Destrinchar o processo e escrever esse texto enorme depois de anos “fermentando” aqui na cabeça aconteceu num momento muito especial da minha jornada de autoconhecimento – apesar de praticar muito o feedback por anos na minha vida profissional, admito que não faço isso tão bem na vida pessoal. Já pisei na bola várias vezes, e muitas vezes evito o confronto, o que me leva a explodir eventualmente e ao invés de dar feedback eu massacro a outra pessoa com reclamações. Ou não falo nada e fico emburrada. Ou falo pela metade. Tudo de ruim, e ao contrário de tudo o que estou ensinando vocês a fazer.

Como pode? Por que essa desconexão entre o pessoal e profissional?

Cada um deve ter aí seus desafios, mas notei que existe uma questão fundamental que me ajuda demais no processo do feedback profissional: usar a cultura e valores da empresa como referência, sem precisar analisar meus motivos ou negociar com o outro sobre minhas expectativas (já são pré-definidas pela empresa, e coincidem com as minhas!).

(É claro que minha experiência pessoal, trabalhando a vida toda em empresas multinacionais, me moldou. Provavelmente alguém que trabalha como autônomo, de forma menos estruturada, não sente essa desconexão tão forte e aprendeu a lidar com a questão de forma mais fluida)

Lá pro começo dos anos 2000 enquanto aprendia sobre melhoria de processos e mudanças organizacionais, li um livro (perdeu-se, e não lembro o nome) que falava sobre como nossa percepção da realidade é alterada por nossas “lentes”. Usando a visão como metáfora de para nossa percepção do mundo, é como se todos nós usássemos óculos que distorcem como captamos a realidade, e as lentes destes óculos são moldadas pela nossa experiência de vida. Por isso coloquei o poema de Octavio Paz no começo desse texto – “me vejo no que vejo”. Vemos não o que existe, mas uma versão do que existe, distorcida pelo que somos e cremos.

“Perceber é conceber”.

Quando então observamos o comportamento de alguém e percebemos um problema, é fundamental entender se o que percebemos como problema é real ou fruto da distorção da nossa lente. Um exemplo que presenciei há pouco tempo e que ilustra muito bem essa questão: estava numa roda de discussão com mulheres da empresa, de todas as idades e experiências (desde engenheiras até faxineiras, de 16 a 60 anos), e uma delas comentou: “Eu acho que tem mulheres que não se dão o respeito, vêm com calça justa trabalhar, parecem que querem chamar a atenção!” – ou seja: na percepção dela, usar calça justa no ambiente de trabalho marcando a bunda é um problema, não passa uma imagem profissional, é inapropriado. Uma das meninas mais jovens, de 16 ou 17 anos, replicou: “Mas tem um monte de homens fortões aqui, que vêm de camisa e calça super justas todo dia. Você acha a mesma coisa sobre eles ou o problema é só quando é uma mulher?”.

A discussão foi interessante (é normal ninguém achar errado homens exibindo seus glúteos e/ou tórax com roupas justas. Na verdade ninguém nunca nem repara nisso, só as mulheres chamam a atenção), mas o ponto aqui são as lentes – veja a diferença de percepção das duas em relação à mesma questão, à mesma realidade.

Imaginemos uma situação em que a 1ª é uma gerente, e a 2ª é sua funcionária que usa calças justas para ir trabalhar. A gerente então decide dar feedback à sua funcionária por observar que ela usa calças muito justas [COMPORTAMENTO OBSERVADO] e que isso é inadequado no ambiente de trabalho, pois distrai os rapazes da equipe [CONSEQUÊNCIA]. Vamos imaginar também que a empresa é conservadora, e seus valores estão em linha com a percepção da gerente. Podemos aplicar a técnica de feedback, o que vai ajudar a manter objetividade e respeito no processo de comunicação, mas a mensagem vai ser violenta pra a moça que escuta, de qualquer forma. Não existe acordo entre a percepção da realidade da gerente e a dela. Ela provavelmente vai se sentir invadida e injustiçada, a menos que aceite que deve se submeter à visão da gerente e da empresa. Em geral é o que acontece – o lado “mais fraco” acaba cedendo, por comodidade ou falta de poder de negociação, e a “lente” corporativa é que determina o certo e errado.

(E é por isso que, pra mim, dar feedback profissionalmente é mais fácil: não preciso questionar nem entender muito minhas lentes, e a maioria das diretrizes da empresa coincidem com as minhas, e assumo automaticamente que esse senso comum é o CERTO. A verdade incômoda é que não é tão fácil assim)

Às vezes a gente também cede e muda por medo, ou por amor. O que não significa que a mudança é real, sustentável e saudável. E quem deu o feedback nem sempre sabe que existe um abismo entre sua percepção da realidade e a do outro. A mudança pode até acontecer, mas sobre bases pouco sólidas. Daí a importância de conhecer a si mesmo, entender quais são nossas lentes e nossas motivações – não há como ser generoso e aberto para entender o outro se sequer sabemos que estamos vendo uma realidade distorcida.

Na vida pessoal nem sempre há um senso comum óbvio e universal, uma “base” sólida para pautar a análise do comportamento do outro tal que seja simples usar a técnica de observar-contextualizar-mostrar consequências-propor mudança. Há a lei, claro, mas se precisar dar um feedback usando a lei como referência é porque a coisa tá feia (mas infelizmente consegui pensar em alguns casos em que isso seria pertinente – alguém que estaciona indevidamente em vagas de deficientes, por exemplo).

O mundo fora do ambiente corporativo controladinho é um caos coletivo de culturas, valores, crenças; não existe um conjunto comum e óbvio de regras regendo a vida e os relacionamentos. Tudo é negociado caso a caso, e quase nunca de forma objetiva. Quanto mais de perto observamos os outros e em especial quando os conflitos aparecem, fica muito claro que “senso comum” não existe, e que a forma como cada um enxerga e interpreta o mundo e as regras (culturais, sociais) é muito diferente. O grande desafio é enxergar e entender a si mesmo e também ao menos enxergar o outro, para que seja possível fazer uma ponte e encontrar os pontos de contato.

Ora, se o objetivo do feedback é comunicar ao outro que algo no comportamento dele não está funcionando pra você, ou para o entorno, você precisa conseguir mostrar PORQUE aquele comportamento não funciona. Quando existe um conjunto de valores e regras explícito e conhecido regendo as relações, como é o caso numa empresa, basta aplicar a técnica e pronto, é moleza (não é, mas vocês entenderam J). Quando essa base comum não existe, fica bem mais complicado: é muito provável que a razão do problema que você enxerga seja relacionada às suas expectativas, que por sua vez estão relacionadas aos seus valores, à sua visão de mundo. Nem sempre o outro está errado e precisa ser corrigido! Muitas vezes, só o que queremos é que o outro se comporte da forma que nós queremos, da forma que nós consideramos correta.

(Existe forma certa de se comportar ou de fazer as coisas?)

Há uma diferença enorme entre reconhecer um conflito com o outro, perceber que algo incomoda você ou não está funcionando, e assumir que o problema é do outro e precisa ser resolvido por ele. E se o problema for sua percepção do mundo, seu grau de expectativas? E se houver um ‘gap’ entre as percepções e expectativas de vocês que precisa ser resolvido, que não passa necessariamente por uma mudança de comportamento? E se a questão for ainda mais complexa e é uma combinação de tudo isso?

Ou seja, às vezes os conflitos que precisamos resolver com outros estão relacionados a um abismo entre o que nós acreditamos que seja a forma certa de fazer algo (dentro do nosso sistema de vida) e a forma que a outra pessoa faz as coisas (segundo o sistema de vida dela). O problema é muito anterior ao comportamento, que nem sempre precisa de mudança.

(Escrevi ali em cima “às vezes” mas quanto mais penso e vivo, mais acho que pode trocar por “quase sempre”…)

Pô, mas agora fiquei confusa. Até aqui achei que feedback era sobre EU dizendo para O OUTRO onde ele estava errando, para que ele possa corrigir! Agora você me diz que o problema é MEU TAMBÉM?!

Exatamente J

(Tá funda essa toca do coelho, né? Vai piorar.)

Pra dar feedback de forma construtiva e generosa, precisamos não só observar o outro, mas nos observar e conhecer muito bem, entender nossas lentes e nossos vieses inconscientes. Sobre esse assunto não dá pra falar neste capítulo e nem neste texto, prometo escrever um texto só sobre ele, mas saiba: a comunicação (feedback incluso) não funciona, ou fica quebrada, se não sabemos o que nos move, quais são nossas lentes e nossos vieses. O problema nem sempre é o comportamento do outro, pode ter muito mais a ver com a forma como nos afeta, por mil motivos (vários deles inconscientes). E do lado de lá tem todas as lentes e vieses também do outro.

Esse ponto é tão importante que me fez incluir mais um item nos passos do feedback, logo após observar objetivamente o comportamento do outro que nos incomoda e o seu contexto. Não dá pra dar feedback para o outro sem fazer a lição de casa (um mínimo de autoanálise).

Feita essa viagem ao centro da nós mesmos, voltemos: é também preciso se importar com o outro, aquele que nos ouve, para que o feedback funcione bem.

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