me vejo no que vejo

Vejo bastante gente falando que falta “interpretação de texto” no mundo, e embora eu ache essa habilidade importante, não concordo que a raiz do problema de comunicação é essa; quanto mais penso nisso, mais acho que o problema está no viés de confirmação, que afeta não só a leitura de textos mas toda nossa “leitura” da realidade.

 

Alguém disse que vemos o mundo não como ele é, mas como somos, e é exatamente aí que começa o problema: além de sim, vermos o mundo como somos, procuramos (e encontramos) padrões que “casem” com aquilo que queremos provar como tese ou acreditar.

 

Talvez isso seja óbvio pra você (pra mim já é, de tanto que penso nisso), mas não significa que saber disso anula o mecanismo. Por exemplo: sou de esquerda; quando leio ou ouço algo que comprova minha visão de mundo alinhado à esquerda, me dá alívio e prazer, e quero saber mais, compartilhar, repetir; acolho aquela informação como verdade sem duvidar. Quando me aparece algo mais alinhado à direita, é um esforço ouvir ou ler. Tenho que prestar atenção, lutar contra o desejo de duvidar de tudo e questionar, e mesmo caso consiga ao menos apreciar o ponto de vista, jamais quero repetir ou compartilhar.

 

Em primeiro lugar, não consigo às vezes nem ler e ouvir, rejeito ou ignoro o que não “bate” com minhas ideias; e quando ultrapasso essa primeira barreira, duvido e fujo quando essas ideias fazem sentido. Elas não combinam com minha configuração mental.

 

Seria como procurar, comprar e trazer pra minha casa um sofá que eu acho horrorosamente cafona, por exemplo. (E esse mesmo sofá serve muito bem e é amado e desejado por alguém com gosto diferente do meu, mal comparando)

 

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Não é que as pessoas não saibam interpretar textos, é que elas não leem o que está de fato escrito, leem seletivamente o que interessa e extrapolam muito o que está ali, com base nas suas crenças, problemas, preconceitos, dores e amores.

 

E não vamos nos enganar: não é possível eliminar vieses. Eles são parte de nós. Mas sim, é possível entender nossos vieses e tentar neutralizá-los. Não pra ser outra pessoa, ser “neutro”, mas para ganhar a (maravilhosa) capacidade de aprender e evoluir.

 

(E se você acha que bastam “fatos e dados” pra neutralizar vieses, eu tenho más notícias, leiam essa historinha super didática sobre crenças)

 

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Vejo isso acontecer TODO DIA, aqui online e na real, nos relacionamentos. E não é sempre produtivo apontar isso pras pessoas, pois elas resistem e não admitem (às vezes não entendem nem percebem) que estão sob efeito dos seus vieses.

 

Vieses inconscientes não funcionam só para coisas ruins como preconceito racial, de gênero, de idade. Funciona para coisas positivas também. É um mecanismo, que precisamos entender e aprender, é autoconhecimento.

 

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Inclusive, sobre “fake news”: quem cria essas notícias é mau caráter, mas quem propaga não necessariamente. As pessoas normalmente não pensam em checar fatos quando eles confirmam sua opinião.

 

Do mesmo jeito que a pessoa horrível repassa a notícia falsa de que uma criança assassinada era na verdade um bandido (porque ela crê que bandidos merecem morrer mesmo se forem crianças, e talvez essa seja a única forma daquele fato fazer sentido), a pessoa querida repassa a notícia também falsa de que alguma celebridade milionária que ela gosta ajudou milhares de crianças carentes (porque afinal faz sentido que celebridades milionárias que amamos façam boas ações).

 

Fake news só são um problema grave nos nossos tempos graças ao viés de confirmação.

 

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As pessoas não precisam (só) aprender interpretação de texto; elas precisam aprender sobre si mesmas e ter a coragem e humildade de conhecer suas próprias armadilhas.

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