como se tivesse 7 anos

cada dia mais eu acho que coisas que não são possíveis de explicar para uma criança de 7 anos, como o otto, a gente precisa rever. essa semana me deparei com um caso curioso, vejam lá:

descobri que o otto gosta de ouvir rádio no carro, o que muito me surpreendeu. ele é da geração de Spotify, NetFlix e YouTube como fontes de lazer e informação, o formato de disseminação de informação com propaganda não faz parte da vida dele, e é repudiado. ele pula as propagandas do YouTube (e assiste pouco, prefere NetFlix), e simplesmente não entende a lógica da TV ter programas “fixos” (que não podem ser controlados) e interrupções regulares longas. Já conversamos inclusive sobre os conteúdos do YouTube que são propagandas disfarçadas de histórias, que servem só pra deixar a gente com vontade de comprar (ele conseguiu perceber isso, mas não deixou de ter vontade de ter e comprar; esse é outro passo da evolução, que não sei se acontecerá).

mas voltando pro rádio — achei curioso ele querer ouvir o cara falando, no meio das músicas aleatórias. imaginei que esse menino que gosta tanto de controle e está familiarizado com a tecnologia podia se irritar com o formato, mas não só não se irrita como gosta. interessante.

mãe preocupada com a questão da propaganda que sou, comecei então a prestar atenção nas propagandas do rádio e… meodeos. são inúmeras, mas tem essa uma propaganda em especial é que bastante repetida aqui na região de campinas (especialmente pela manhã, no horário que vou pro trabalho) e que me deixou muito incomodada: doutor formen.

FOR MEN, no caso, “para homens”, é uma clinica especializada em desempenho sexual. do homem, claro. a propaganda é bem gráfica: “dificuldades com desejo sexual? impotência? ejaculação precoce? temos a solução para os seus problemas, etc. e tals.”

estou longe de ser puritana, e busco sempre explicar as coisas pro otto de forma bem direta, desde muito cedo. já explicamos por alto como funciona o nascimento dos bebês, embora não tenhamos explicado a mecânica pênis-vagina para que o espermatozóide chegue ao óvulo (ele não perguntou detalhes, e somos adeptos de fornecer somente os detalhes que interessam pra criança). dito isso, meus incômodos com essa propaganda são vários, e pensei em como explicá-los pra vocês. decidi fazer um diálogo simulado com uma criança de 7 anos pra tentar ilustrar.

(AVISO: o diálogo abaixo é ficção, mas poderia ser real. vamos assumir que a criança de 7 anos já entendeu o que é sexo)

c7a: “ei, o que é ‘desejo sexual’?”

eu: “é a vontade de ter contato sexual com alguém, vontade de praticar sexo”

c7a: “e o que é ‘impotência’?”

eu: “é falta de potência. nesse contexto quer dizer que um homem não consegue fazer seu pênis ficar duro.”

c7a: “por que ele precisa dele duro? e por que se não estiver é ‘impotência’?”

eu: “o pênis precisa estar duro para poder entrar na vagina. se ele não fica duro, os homens se sentem impotentes e acham que não pode haver sexo. já aproveito pra explicar pra você, criança, que sexo não é só o que acontece quando há um pênis envolvido diretamente ou ele está duro. sexo não é só o pênis na vagina. uma relação sexual acontece mesmo que não haja pênis, inclusive. mulheres também fazem sexo entre si ou sozinhas, sem precisar de um pênis.”

c7a: “mas o que é ‘ejaculação precoce’?”

eu: “quando o pênis fica duro e entra na vagina, depois de um tempo acontece a ejaculação, que é quando os espermatozóides são liberados para chegar até o óvulo, que fica no útero. é assim que os bebês são feitos, através da fecudação do óvulo. ‘ejaculação’ é a liberação dos espermatozóides, e ‘precoce’ é quando essa liberação acontece de forma rápida demais.”

c7a: “por que não pode ser rápido?”

eu: “porque existe essa ideia de que demorar mais para liberar os espermatozóides é bom, porque sexo é uma atividade que dá prazer, é boa. então quanto mais durar, teoricamente, melhor.”

c7a: “e por que o moço tá oferecendo solução no rádio pra isso?!”

eu: “porque há homens que têm problemas com isso, e o prazer e a auto-estima do homem são assuntos importantes o suficiente para merecer anúncio no rádio com soluções pra resolver isso.”

c7a: “e as mulheres não têm problema com isso?”

eu: “as mulheres, criança, têm muitos problemas com isso. elas não são ensinadas a se preocupar com seu próprio prazer e felicidade nas suas relações sexuais. elas não são ensinadas a conhecer e cuidar das suas vaginas. as mulheres são ensinadas a garantir que podem reproduzir, e que estão aptas pra isso. ninguém oferece soluções para que mulheres sejam mais felizes nas suas vidas sexuais.”

OK, admito que talvez não fosse possível (ou razoável) ter essa conversa com uma criança de 7 anos. mas talvez seja viável ter essa conversa com uma criança de 10, 12 anos. precisamos falar disso — por que é normal uma propaganda falando sobre como melhorar o desempenho sexual masculino, o mundo girando em torno do pinto e como ele deve ser duro e apto a ejacular, enquanto não falamos NUNCA sobre a vagina, a vulva, o clitóris, o orgasmo feminino?

alguém já viu uma propaganda tipo “amiga, você tem bons orgasmos durante o sexo com seu parceiro? você sabe se masturbar? nós da PRAZMINA temos dicas pra te ajudar!”

sabem quantas mulheres nunca sequer viram a própria vulva? A MAIORIA. e os meninos enquanto isso, desde pequenos seguem balangando seus pintos pela vida, tirando o dito cujo da calça sempre que possível, a onipresente representação da sua sexualidade em forma de apêndice (que inclusive é tratado como tendo vida própria, olha que maluquice), epicentro de toda civilização.

quantos homens sabem fazer sexo sem pinto? quantos deles sequer consideram que é sexo se não tiver pinto envolvido?

(pra não ser injusta, essa cultura pintocêntrica é tão forte que muitas mulheres também acham que sem pinto não tem sexo, mesmo sendo somente a minoria — alguns estudos falam de apenas 25% — das mulheres que têm orgasmos somente com penetração!)

modosque me incomoda sim ter que explicar essa propaganda bizarra pro meu filho, caso seja necessário, mas me incomoda muito mais a existência tão naturalizada dessa propaganda no rádio quando a maioria dos homens sequer sabe que a entrada da vagina e a uretra são orifícios diferentes e o clitóris é um ilustre desconhecido.

não é à toa que só existe viagra-e-afins pra homens. ainda vivemos numa sociedade em que mulher não tem desejo, tem obrigação.

Deixe um comentário