Amiga Lu: você teria gostado de celebrar mais um solstício de verão. Vendo aqui as reclamações todas a respeito do calor infernal, só lembro de você e sua alegria com essa época. Lembro de tantos anos que falamos sobre solstícios e fases, ciclos, sobre a vida.
Nossa última conversa foi sobre isso: a vida. Essa que vivemos em conjunto nestes anos de tramas e histórias. Fizemos um resumo, foi tão interessante. Você também falou da morta — a sua, iminente, que aconteceria poucos dias depois da minha visita. Fiquei feliz em poder compartilhar com você mais algumas horas e histórias, inclusive a do Gauguin, que me divertiu bastante.
Não sei porque só consegui escrever hoje, e faço esse #retratofalado póstumo, lamentando não ter feito isso ainda a tempo de você ler, você teria gostado. Quer dizer, eu sei sim. Aquela visita a você, podendo observar sua aparente falta de medo, mexeu com todas as fundações de mim mesma. Sem saber você foi um espelho tão fiel que quebrou uma casca já sendo afinada há anos — a de que temos controle, a de que eu (tão ingênua) tenho controle das coisas.
Você sempre foi sólida, amiga. Não imutável, porque te vi mudar sim, mas firme e forte nas convicções (mesmo as que no fundo estavam erradas 🙂 mas estar certo é menos importante que ter fé, certo?). Você viveu como quis, feito um trator rasgando a terra e plantando à revelia. Seus caminhos foram incomuns, assim como você. Seu sorriso fácil, aberto, coroado por cachinhos, amenizavam uma vontade de ferro, um temperamento de imperatriz dos seus domínios.
Naquele nosso último encontro, eu te vi imperatriz e maestrina do seu ato final, com meus olhos do cérebro. Mas meu coração viu mais, e demorou muitas semanas pra absorver, amiga querida. Meu coração viu toda a humanidade de cada irmã que morre, que está só na angústia de deixar essa vida com tudo de maravilhoso que ela tem. Meu coração viu a despedida amarga de tantas coisas por fazer, de tudo que podia vir-a-ser. Ele também viu — e foi aí que minha casca quebrou — que por mais que sejamos poderosas, decididas, esclarecidas e felizes, não podemos controlar tudo. Que aliás não podemos controlar quase nada, e isso DÓI e apavora.
Sua alegria e humor inabaláveis sempre foram confortáveis pra mim; um espelho positivo. É gostoso se relacionar com quem é parecido com a gente.
Neste último ato entre nós, sua ilusão de controle absoluto se infiltrou no meu inconsciente, e me fez enxergar do lado de lá do espelho, aquele que a gente não quer ver. A sombra. Cheguei a admirar sua força e coragem no final, falando sobre a morte sem medo. Você me enganou, e me fez sentir orgulho de tanta força.
Foi depois, quando meu cérebro esqueceu, que meu coração processou a mensagem: ela está com medo, sim. Quem não estaria? Só não consegue admitir e lidar com ele. Ela não admite não ter controle sobre sua vida e morte, e segue com a ilusão de controle (que seja somente dos seus sentimentos, senão do inevitável fim).
Amiga, você me ensinou tanto! Me fez perceber o quanto eu precisava aprender a pensar em mim primeiro e depois nos outros. Me ensinou a dizer adeus a relações que morreram. Me lembrou de ter orgulho de quem eu sou, mesmo que não agrade aos outros. E no final, já depois de ir embora, me ensinou que está bem ter medo, está bem não controlar tudo.
Queria ter sido mais rápida pra perceber isso, ainda naquele dia, te abraçar mais forte e dizer que é pra isso que temos amigos: pra poder sentir medo e saber que tem alguém pra segurar na nossa mão, até o final.
Você vive em mim, querida amiga. Continuamos juntas, de mãos dadas, todas que vieram, as que estão e as que chegarão.