Não devia

Semana passada o Fernando e eu falávamos de como a gente normaliza as coisas, como nos adaptamos a qualquer coisa. Estamos vivendo aqui nos USA há 18 meses e 2 coisas nos chamaram a atenção: a surrealidade do sistema de saúde e a preocupação zero com segurança.

O sistema de saúde daqui, pra qualquer pessoa do mundo, é incompreensível e assustador. Cuidar da própria saúde é caro e inviável, seja pêlos valores absurdos cobrados ou pela complexidade do sistema. Por exemplo — eu não posso me consultar com um ortopedista sem ter passado antes por um clínico geral. Eu liguei no final de Março pra marcar uma consulta e a médica só tem agenda pra JUNHO. Um exame de sangue custa 1000 dólares, um exame médico simples, 500 dólares. Tou arredondando — tem mais barato (não muito), tem bem mais caro. Uma ambulância, em caso de emergência? Milhares de dólares. Sim, você paga se precisar ser resgatado. Isso tudo se você tiver seguro saúde, claro. Se não tiver… paga mais.

Mas todo mundo aqui trata isso como normal, é assim que é. Parece aquela história (falsa, ouvi dizer) do sapo na panela. Quando a gente se mostra horrorizado as pessoas nem entendem, porque estão imersas nessa realidade.

Aí corta pro Brasil, onde tem lugares que a milícia anda com fuzil na mão em plena luz do dia, controla a sociedade ao redor, e crianças são mortas ainda de uniforme enquanto voltam da escola. E não é tipo um lugarzinho escondido, um gueto, são cidades inteiras. O Rio de Janeiro parece locação de filme de terror. As favelas de SP idem. 180 mulheres são estupradas por dia no Brasil. Não se pode andar na rua sem ter medo, não se pode falar no celular na rua. Parar no semáforo em SP de vidro aberto? Não pode.

Eu poderia ficar aqui o dia todo. Como a gente normaliza isso? As pessoas nem pensam mais nesses assuntos, simplesmente vivem com isso.

A gente se acostuma, mas não devia, como disse Marina Colasanti.

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Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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