Eu comentava com o Fernando que nosso corpo é um negócio muito louco, e lembrei de um livro do Stephen King em que um alienígena ocupa o corpo de um humano e se espanta com o sistema digestivo (é louco mesmo).
Aí ele se lembrou desse pequeno conto / peça muito legal, que ele traduziu pra nós.
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Eles São Feitos de Carne
Terry Bisson
1990
“Eles são feitos de carne.”
“Carne?”
“Carne. Eles são feitos de carne.”
“Carne?”
“Nenhuma dúvida. Nós pegamos vários de pontos diferentes do planeta, trouxemos a bordo das naves de reconhecimento, e usamos todas as sondas possíveis. Eles são totalmente carne.”
“Isso é impossível. E os sinais de rádio? As mensagens para as estrelas?”
“Eles usam as ondas de rádio para falar, mas os sinais não vêm deles. Os sinais vêm de máquinas.”
“Então quem fez as máquinas? São eles que temos que contatar.”
“Eles fizeram as máquinas. É isso que estou tentando te dizer. Carne fez as máquinas.”
“Isso é ridículo. Como carne poderia fazer uma máquina? Você está me pedindo que acredite em carne consciente.”
“Não estou te pedindo, estou te contando. Essas criaturas são a única raça senciente naquele setor e eles são feitos de carne.”
“Talvez eles sejam como os orfolei. Você sabe, uma inteligência baseada em carbono que passa por um estágio de carne.”
“Não. Eles nascem carne e eles morrem carne. Nós os estudamos por várias de suas gerações, o que não levou muito tempo. Você tem alguma ideia de quanto dura uma geração de carne?”
“Não quero saber. Tudo bem, talvez eles sejam só parte carne. Você sabe, como os weddilei. Uma cabeça de carne com um cérebro de plasma de elétrons dentro.”
“Não. Nós pensamos nisso, já que eles têm cabeça de carne, como os weddilei. Mas eu te disse, nós os testamos. Eles são completamente carne.”
“Nenhum cérebro?”
“Ah, eles têm um cérebro sim. Mas o cérebro é feito de carne! É isso que eu estou tentando te dizer.”
“Então… o que é que pensa?”
“Você não está entendendo, está? Você está se recusando a aceitar o que eu estou dizendo. O cérebro pensa. A carne.”
“Carne que pensa! Você está me pedindo que acredite em carne que pensa!”
“Sim, carne que pensa! Carne consciente! Carne que ama. Carne que sonha. A carne faz tudo! Você está começando a entender a coisa ou eu tenho que começar de novo?”
“Deusdocéu. Você está falando sério. Eles são feitos de carne.”
“Obrigado. Até que enfim. Sim. Eles são realmente feitos de carne. E eles vêm tentando entrar em contato conosco por quase cem dos anos deles.”
“Deusdocéu. E o que essa carne está querendo?”
“Primeiro quer falar com a gente. Depois eu imagino que queira explorar o Universo, contatar outros sencientes, trocar ideias e informações. O de sempre.”
“Nós temos que falar com carne.”
“É a ideia. É a mensagem que eles estão enviando por rádio. ‘Olá. Alguém aí. Alguém em casa.’ Essas coisas.”
“Eles falam mesmo, então. Eles usam palavras, ideias, conceitos?”
“Ah, sim. Só que fazem isso com carne.”
“Você acabou de me dizer que eles usam rádio.”
“Eles usam, mas o que você acha que está no rádio? Sons de carne. Você sabe como quando você bate na carne ou bate a carne em algo, faz um barulho? Eles falam batendo as carnes umas nas outras. Eles podem até cantar comprimindo ar pela carne.”
“Deusdocéu. Carne que canta. Aí é demais. Então qual a sua recomendação?”
“Oficialmente ou não oficialmente?”
“Ambos.”
“Oficialmente nós somos obrigados a contatar, receber e registrar todas e quaisquer raças ou multisseres sencientesneste quadrante do Universo, sem preconceito, medo ou favorecimento. Não oficialmente eu recomendo que a gente apague os registros e esqueça a coisa toda.”
“Eu estava torcendo para que você dissesse isso.”
“Parece duro, mas há um limite. Nós realmente queremos fazer contato com carne?”
“Concordo cem porcento. O que iríamos dizer? ‘Olá, carne. Como vai?’ Mas isso vai dar certo? De quantos planetas estamos falando?”
“Apenas um. Eles conseguem viajar para outros planetas em cápsulas especiais para carne, mas não conseguem viver nesses planetas. E sendo carne, eles só podem viajar pelo espaço C. O que os deixa limitados à velocidade da luz e torna a possibilidade de que eles um dia façam contato bem pequena. Infinitesimal, na verdade.”
“Então só vamos fingir que não tem ninguém em casa no Universo.”
“É isso.”
“Cruel. Mas você mesmo disse, quem quer conhecer carne? E os que estiveram a bordo de nossas naves, os que você analisou? Você tem certeza de que não vão se lembrar?”
“Eles vão ser considerados malucos se lembrarem. Nós entramos em suas cabeças e alteramos a carne para sermos apenas um sonho para eles.”
“Um sonho para carne! Que estranhamente apropriado, que nós tenhamos que ser sonho de carne.”
“E classificamos o setor inteiro como desocupado.”
“Bom. De acordo, oficial e não oficialmente. Caso encerrado. Mais algum? Alguém interessante naquele lado da galáxia?”
“Sim, uma inteligência coletiva de núcleo de hidrogênioum pouco acanhada, mas encantadora em estrela classe nove na zona G445. Estavam em contato há duas rotações galácticas, querem ser amigáveis de novo.”
“Eles sempre mudam de ideia.”
“E por que não? Imagine quão doloroso, quão inexplicavelmente frio o Universo seria se você estivesse sozinho…”