A fome

Não tou com muita vontade de falar do evento que participei sábado porque ele bateu MUITO forte em mim.
Foi excelente. Mas doeu também, mais do que eu pensei que poderia nessa altura da vida. Sabe quando você acha que já entendeu tudo, que as coisas tão claras e você sabe exatamente o que tem que fazer? Tava me sentindo assim. Muito tranquila e na zona de conforto. Certa de que tou fazendo tudo “direito”.
Aí vem umas moças, jovens, inteligentes, com sangue no olho e coração em chamas, e me tiram o chão. Não porque eu estou errada e elas estão certas, mas porque me senti no Stranger Things. Vivemos em mundos paralelos. Percebi a força da minha bolha. E não é aquela bolha do bem, que a gente cria pra se proteger; é a bolha da cegueira, de quem vem acumulando privilégios e sem querer (juro) esquece que existe um outro mundo.
Não existe mundo certo nem errado, há mundos, e realidades, e fases da vida. Essa é a minha, e tenho orgulho do caminho que fiz, da pessoa que me tornei. Mas doeu perceber que me desconectei de outros mundos que também existem, e eu não soube fazer pontes.
Não acho que seja minha responsabilidade fazer pontes, necessariamente; mas o desconforto me mostrou que eu QUERO. E desejos não expressos doem, e incomodam feito unha quebrada.
Esse despertar me fez lembrar desse poema da Adélia, que é genial, e só quem estiver nesta fase da vida vai entender (se você é jovem, aguarde, essa hora vai chegar):
A mim que desde a infância venho vindo,

como se o meu destino,

fosse o exato destino de uma estrela,

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem,

amaria chamar-se Fliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho,

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

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